A pauta desta semana para esta coluna seria outra. O texto já estava quase finalizado quando uma notícia não apenas bateu à porta, ela arrombou. Refiro-me ao episódio em que Marina Silva abandona uma audiência na Comissão de Infraestrutura (CI) do Senado após discussão com senadores. O texto que havia preparado fica para outro momento. Hoje, prefiro conversar com você a respeito de como a política tem se estruturado para nossos corpos manter fora dela e, para algumas mulheres, as pretas, como Marina Silva, esse obstáculo ainda é maior.
Em uma conversa recente com colegas jornalistas, relembrei que escolhi estudar política no meu mestrado em Comunicação. Na época, acreditava que era a área mais séria e relevante dentro da pesquisa. Hoje, compreendo que política e cultura são igualmente fundamentais, embora pensar política tenha me causado cada vez mais desconforto. E vou explicar por quê.
Nestes anos em que acompanho política, um termo surgiu com força: violência política de gênero. Dediquei parte da minha dissertação ao tema. Relatei que uma pautas comuns de defesa das parlamentares do Congresso brasileiro é ela. Trata-se de práticas sistemáticas que visam impedir, dificultar ou restringir a atuação de mulheres na política. Essa violência se materializa de várias formas: falta de financiamento para campanhas, agressões verbais e até físicas. E os exemplos são muitos.
Lembro do caso da deputada Isa Penna (SP), importunada sexualmente dentro da Assembleia Legislativa por um colega parlamentar. Ou da ex-presidenta Dilma Rousseff, que teve sua imagem estampada em adesivos simulando estupro, colados em tampas de combustível de veículos. Também da deputada Joice Hasselmann, chamada de “porca” pelo filho 03 do ex-presidente Jair Bolsonaro, após romper com o grupo. E, claro, da infame frase “você não merece ser estuprada”, proferida por Bolsonaro à deputada Maria do Rosário. Em Goiás, o caso mais recente envolve a deputada Bia de Lima, alvo de ataques dentro da Assembleia Legislativa.
Quando defendi minha dissertação, em 2020, ainda não havia legislação específica sobre violência política de gênero. Somente em agosto de 2021 entrou em vigor a Lei nº 14.192, que define como violência política contra a mulher “toda ação, conduta ou omissão com a finalidade de impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos da mulher” e estabelece “normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher”. Mas, como sabemos, ter uma lei é diferente de garantir sua efetividade. E o episódio com Marina Silva é prova disso.
Na última terça-feira (27), a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, participou de uma audiência na Comissão de Infraestrutura (CI) do Senado, onde se discutia a criação de unidades de conservação marinha no Norte do país. O que deveria ser um debate institucional tornou-se um palco de violência simbólica e misoginia.
Logo na abertura, o senador Plínio Valério (PSDB-AM) disparou: “A mulher merece respeito, a ministra não.” A frase, carregada de misoginia, evidencia uma distinção inaceitável entre ser mulher e ser ministra. Pergunto: essa fala seria dirigida a um homem? Muito provavelmente não. Afinal, o próprio ambiente político foi historicamente pensado para homens — tanto que, até 2016, não havia banheiro feminino próximo ao plenário do Senado. Isso não é detalhe. Isso é estrutura. “O lugar é deles”. Dos homens e seus banheiros pensados para eles.
O espetáculo misógino continuou com a fala do senador Marcos Rogério (PL-RO), que ordenou: “Ministra, se ponha no teu lugar.” Mas que lugar seria esse? O de ministra de Estado, uma das mais respeitadas do mundo na pauta ambiental? Certamente, não foi isso que ele quis dizer. A fala remete diretamente ao velho discurso de que “lugar de mulher não é na política”. No Brasil, as mulheres são 52% da população e do eleitorado, mas estão sub-representadas na política. Ocupamos menos cadeiras parlamentares que países como a Arábia Saudita, Egito e Iraque. Portanto, quando um senador diz a uma ministra para “se colocar no seu lugar”, o recado é claro: “volte para o espaço privado e deixe que os homens decidam.”
Diante das agressões, Marina Silva não se calou. “Sou ministra de Meio Ambiente, foi nessa condição que eu fui convidada e ouvir um senador dizer que não me respeita como ministra, eu não poderia ter outra atitude” disse Marina Silva em coletiva após a audiência. Sem o devido pedido de desculpas, a ministra deixou a audiência. Vale lembrar que o mesmo senador Plínio Valério já havia dito, em outra ocasião, que gostaria de “enforcá-la”, tornando explícito o nível da violência discursiva.
No Brasil, a violência é marcada por gênero -, em 2024, foram registrados 1.450 feminicídios e são registrados 196 estupros por dia -, ea violência política de gênero é tipificada, um parlamentar dizer isso não é insignificante, não pode passar como piada para os seus. Mas como tantos casos que relatei, a maioria acaba em nota de repúdio de CNPjs e CPFs e o político continua com o mandato.
A violência política de gênero no Brasil não pode ser analisada sem levar em conta o recorte racial. É impossível não comparar a hostilidade dirigida a Marina Silva — mulher negra, de origem humilde — com o tratamento recebido por Virginia, influencer investigada na CPI das Apostas Esportivas, dias antes. Enquanto Marina foi destratada, interrompida e desrespeitada, Virginia — branca, de cabelos loiros e aparência cuidadosamente planejada — foi recebida de forma cordial e até condescendente. Aqui, não se trata de desejar que uma também fosse destratada, mas sim de apontar como a interseccionalidade entre racismo e misoginia molda o tratamento dado às mulheres na política.
As cenas no Senado me remetem a duas obras distópicas. A primeira é “O Conto da Aia” (1985), de Margaret Atwood, em que mulheres são relegadas a papéis de servidão de corpos e da figuração de submissas como “belas, recatadas e do lar”. A segunda é “Vox: O Silêncio pode Ser ensurdecedor” (2018), de Christina Dalcher, em que mulheres só podem pronunciar 100 palavras por dia — ultrapassar esse limite é motivo de punição. O que vimos no Senado foi uma tentativa de transformar essas distopias em realidade. Se isso ocorre diante das câmeras, imagine o que se faz nos bastidores, longe dos olhos públicos.
A trajetória de Marina Silva é, por si só, um ato de resistência. Mulher negra, filha de seringueiros do Acre, enfrentou pobreza, fome e analfabetismo na infância. Sua crença no poder transformador da educação a levou a ser senadora, ministra e uma das vozes mais respeitadas do mundo na luta ambiental. Conheci mais sobre sua história no podcast “Mano a Mano”, do Mano Brown, e saí profundamente impactada. Assim como Marina acredito que a educação muda vidas. Por isso, escrevo este texto como um elogio à postura digna de Marina Silva. Ela não abaixou a cabeça. Exigiu respeito. Quantas de nós já precisamos fazer isso? Quantas de nós já fomos questionadas por ser quem somos e estar nos locais de poder que estamos?
Tudo isso me lembrou dos versos de Cora Coralina que também foi alvo de pedras, mas escreveu em versos: “Ajuntei todas as pedras /Que vieram sobre mim / Levantei uma escada muito alta/ E no alto subi”. Que tenhamos coragem para enfrentar os atiradores de pedras e sejamos mais Marinas e Coralinas.