É possível apagar memórias?

Pesquisas recentes revelam que luz, sons e até medicamentos podem interferir na forma como lembramos de experiências traumáticas e apontam caminhos para o tratamento de memórias dolorosas.

Compartilhe

Imagem gerada por IA

Pesquisadores ao redor do mundo estão se aproximando de um objetivo que parece saído de um filme de ficção científica: apagar memórias. Ou, mais especificamente, enfraquecer lembranças traumáticas, aliviando os efeitos psicológicos que elas causam. Técnicas que envolvem luz, som e até medicamentos estão sendo testadas para interferir nesse processo. Mas o que a ciência já sabe sobre isso? E o que ainda é especulação?

Por que lembramos mais do que é ruim?

Nossa memória é seletiva. Embora retenhamos uma enorme quantidade de informações ao longo do dia, a maioria delas desaparece naturalmente. Mas experiências negativas tendem a permanecer. Isso não é por acaso.

Eventos ligados a fortes emoções — especialmente o medo — são tratados como prioridade pelo cérebro. A lógica evolutiva é simples: se algo nos ameaçou, precisamos nos lembrar disso para não repetir o erro. O sistema límbico, particularmente a amígdala cerebral, atua como uma espécie de filtro emocional que reforça esse armazenamento.

O problema é quando o cérebro guarda essas memórias “cruas”, sem processá-las corretamente. Esse tipo de registro emocional bruto está por trás de casos de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), em que a pessoa revive o trauma como se ainda estivesse acontecendo.

A ciência e as novas possibilidades

Diversos estudos têm explorado maneiras de interferir nesse mecanismo natural. Uma pesquisa recente da Universidade de York, no Reino Unido, mostrou que tocar sons específicos durante o sono profundo pode alterar a forma como certas memórias são armazenadas — e até enfraquecer seletivamente aquelas associadas a experiências negativas.

Outro experimento, desta vez da Universidade de Hong Kong, testou uma técnica chamada Reativação da Memória Direcionada (TMR), que associa sons ou palavras a memórias ruins e, em seguida, reapresenta esses estímulos durante o sono. Ao “misturar” essas lembranças negativas com imagens positivas, os participantes passaram a lembrar menos das experiências ruins, sugerindo que é possível sobrepor memórias traumáticas por meio de estímulos inconscientes.

Luz, sono e medicamentos: uma combinação promissora?

A influência da luz na memória também vem sendo estudada. Experimentos com moscas demonstraram que a ausência de luz interfere na produção de proteínas envolvidas no armazenamento de lembranças traumáticas. Como esses mecanismos são conservados ao longo da evolução, é possível que o mesmo ocorra em humanos.

Além disso, o sono desempenha papel essencial na consolidação da memória. Durante o repouso noturno, o cérebro decide quais memórias serão transferidas para o armazenamento de longo prazo — um processo que pode ser manipulado por estímulos externos, como sons.

Na área farmacológica, drogas como o propranolol — originalmente usadas no tratamento da hipertensão — têm sido estudadas por sua capacidade de enfraquecer memórias emocionais quando administradas logo após um evento traumático. Já a hidrocortisona, um anti-inflamatório comum, demonstrou eficácia no bloqueio de memórias intrusivas quando aplicada nas horas seguintes ao trauma.

Curiosamente, os efeitos variam entre homens e mulheres, dependendo do nível de hormônios como o estrogênio. Isso reforça a necessidade de abordagens personalizadas e da inclusão da perspectiva de gênero na pesquisa científica.

Mas… devemos apagar memórias?

Mesmo que tecnicamente possível, essa questão não é apenas científica, mas filosófica e ética. A memória não serve apenas para nos lembrar do que vivemos, mas também para formar quem somos. Esquecer uma dor pode aliviar o sofrimento, mas também pode apagar aprendizados, lições e mudanças profundas que ela provocou.

Além disso, abre-se uma discussão sobre liberdade mental e manipulação. Quem garante que essas técnicas não sejam usadas de forma abusiva? Em regimes autoritários ou em contextos jurídicos, o controle da memória poderia ser usado como ferramenta de silenciamento.

O filósofo espanhol Jorge Larrosa afirma que “a memória é aquilo que resiste à passagem do tempo” — e isso diz muito sobre o valor que ela tem para nossa identidade. Em vez de apagar o passado, talvez o desafio da ciência seja encontrar formas de conviver com ele sem dor, reescrevendo sua narrativa sem precisar deletá-lo por completo.

O que esperar do futuro?

A ideia de “apagar memórias” ainda está longe de se tornar uma realidade acessível. Os estudos são promissores, mas estão em estágios iniciais e envolvem variáveis complexas. Mesmo assim, eles abrem um caminho para novas terapias no tratamento de traumas e transtornos mentais — especialmente se combinadas com psicoterapia e apoio emocional.

Se você ficou curioso sobre esse tema, vale assistir ao filme Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças (2004), um clássico moderno que explora os dilemas de quem escolhe esquecer por amor. Talvez a ficção esteja mais próxima da realidade do que imaginamos.

Recentes
CRÔNICA – Santa ceia das palavras
CRÔNICA – Santa ceia das palavras
Colunas · 7h
Geração Z no Trabalho: O Futuro que Já Chegou
Geração Z no Trabalho: O Futuro que Já Chegou
Comportamento · 7h
Mais de 335 mil pessoas vivem em situação de rua no Brasil
Mais de 335 mil pessoas vivem em situação de rua no Brasil
Brasil · 9h
Em nota, Lewandowski manifesta pesar pela morte de agentes da PRF em acidente no Rio
Em nota, Lewandowski manifesta pesar pela morte de agentes da PRF em acidente no Rio
Brasil · 10h
Mais do PortalGO
Ricardo Stuckert/PR
Projeto do túnel Santos-Guarujá será apresentado a investidores europeus
Governo busca investidores europeus para túnel submerso no litoral paulista, obra do Novo PAC promete revolucionar mobilidade na região. 18 abr 2025 · Economia
© Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil
Atual e ex-diretor da Abin depõem à PF sobre suposta espionagem ilegal
PF investiga uso ilegal da Abin para espionar autoridades no governo Bolsonaro, incluindo monitoramento de políticos paraguaios no caso Itaipu 18 abr 2025 · Política
Hospital Estadual de Luziânia uniu fé, esperança e muito carinho em um ensaio fotográfico especial com os recém-nascidos da unidade (Foto: SES)
VATICAN MEDIA Divisione Foto
Nas meditações da Via Sacra, papa critica “economia que mata”
Papa Francisco critica “economia que mata” em meditações para a Via Sacra 2025; ele também fez apelos pela paz global e conversão do coração 18 abr 2025 · Variedades
Mabel na Itália. Foto: Secom Goiânia
Mabel visita empresa italiana que é referência mundial em gestão de resíduos
Prefeito de Goiânia esteve na sede da Amsa, em Milão, responsável pela gestão de lixo da cidade, conseguindo reutilizar 100% dos resíduos coletados 18 abr 2025 · Cidades
© Polícia Rodoviária Federal
Acidentes em rodovias federais matam 6,16 mil pessoas em 2024
PRF registrou 6.160 mortes e 84.526 feridos em acidentes nas estradas federais em 2024; Minas Gerais, Paraná e SC lideram estatísticas trágicas. 18 abr 2025 · Brasil
© Bruna Lais Sena do Nascimento/Laboratório de Entomologia Médica/SEARB/IEC
Pesquisa mostra influência de eventos climáticos em surto de febre Oropouche
Estudo na The Lancet associa surtos de febre oropouche na América Latina a mudanças climáticas; Brasil registra 13 mil casos. 18 abr 2025 · Saúde
Divulgação – Corinthians/X
Corinthians demite o técnico argentino Ramón Díaz
Corinthians demite Ramón Díaz após derrota para o Fluminense. Veja detalhes da saída e busca por novo técnico 18 abr 2025 · Esportes
© Marcello Casal jr/Agência Brasil
Saiba mais sobre o simbolismo da Sexta-Feira Santa
Sexta-Feira Santa: entenda o significado religioso e tradições no Brasil. Feriado católico e reflexões sobre a Paixão de Cristo. 18 abr 2025 · Cultura
Foto: Rafael Nascimento/MS
Ministério da Saúde e China reforçam parceria para primeiro Hospital Inteligente do Brasil
Brasil e China reforçam parceria para transformar o SUS com hospital digital, vacinas e produção nacional de insulina. 18 abr 2025 · Saúde