A fruta-do-lobo ou lobeira, nativa do Cerrado, ganhou esse nome por constituir 50% da alimentação do lobo-guará. Em pesquisa realizada por equipe da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCFRP) da USP, o fruto é utilizado para a criação de nanopartículas com potencial para combater o câncer de bexiga. Os resultados estão publicados na International Journal of Pharmaceutics e integram as pesquisas da tese de doutorado da aluna Ivana Pereira Santos Carvalho, defendida em 2022.
O tratamento com essa tecnologia reduziu significativamente o volume de um tumor de bexiga em testes realizados em camundongos. Apesar disso, mais estudos precisam ser realizados para confirmar a eficácia em diversos estágios da doença e garantir maior segurança para o organismo como um todo.
A partir da fruta-do-lobo, os pesquisadores extraíram os compostos solasonina e solamargina, substâncias já conhecidas por suas propriedades anticancerígenas, que foram encapsuladas em nanopartículas híbridas feitas com manteiga de illipê (ingrediente natural utilizado na indústria de cosméticos e cuidado com a pele) e quitosana (produto extraído do exoesqueleto de crustáceos).
Sobre as nanopartículas, a orientadora do estudo, a professora Priscyla Daniely Marcato Gaspari, afirma que são partículas extremamente pequenas, “cerca de 600 mil vezes menores que a espessura de um fio de cabelo”. Já o fato de serem híbridas é explicado por “combinarem dois tipos de materiais: um núcleo lipídico de manteiga natural, que é revestida por uma camada de quitosana, um polímero natural extraído da casca de crustáceos, que apresenta atividade cicatrizante e antimicrobiana”.
Como o revestimento com quitosana tem carga positiva (carga elétrica naturalmente presente nesse extrato), as pesquisadoras observaram melhor adesão das nanopartículas à parede da bexiga, que tem carga negativa. Assim, o tempo em que as nanopartículas permanecem em contato com as células tumorais aumenta, potencializando o seu efeito biológico e diminuindo a quantidade de administrações do tratamento.
Nanotecnologia com produtos naturais

Os estudos foram realizados tanto in vitro, com cultura de células de câncer de bexiga 2D (células cultivadas em uma superfície plana, em que crescem em uma única camada) e 3D (células crescem em forma de estruturas tridimensionais que simulam melhor o ambiente real de um tumor no corpo), quanto in vivo, com a indução do tumor diretamente na bexiga de camundongos. “Para isso, células de câncer de bexiga foram instaladas dentro da bexiga do animal após ser feita uma lesão epitelial por etanol no órgão. Essas células crescem formando o tumor, que depois foi tratado com a formulação. Esse modelo nos permite avaliar a eficácia e segurança in vivo”, conta a professora Priscyla.
No tratamento desenvolvido pelas pesquisadoras, a introdução de glicoalcaloides [compostos tóxicos produzidos naturalmente por algumas plantas, no caso, solasonina e solamargina] no organismo foi feita através de transportadores lipídicos nanoestruturados (NLC), sistema de administração de fármacos baseado em nanotecnologia. Uma das vantagens dessa abordagem é a alta estabilidade, a capacidade de encapsulamento e o custo-efetividade. Com a formulação dessas nanopartículas, foi possível realizar a aplicação do tratamento diretamente na bexiga dos animais pela via intravesical.
Para desenvolver as nanopartículas, as pesquisadoras utilizaram o método de emulsão seguida de sonicação [ondas ultrassônicas] em uma única etapa: a fase aquosa [água destilada] e oleosa [manteiga de illipê com adição de solasonina e solamargina] são homogeneizadas, formando uma nanoemulsão que, depois de resfriada, forma os transportadores lipídicos nanoestruturados. De acordo com a professora, “essa abordagem representa uma alternativa promissora para o tratamento do câncer de bexiga, unindo compostos naturais e nanotecnologia, visando a tornar o tratamento mais eficaz”.
Estudos futuros e segurança
A avaliação da citotoxicidade [capacidade de uma substância danificar ou destruir células] foi feita com foco em estágios iniciais da doença, especialmente em tumores superficiais e não invasivos. Segundo a professora Priscyla, o principal mecanismo de ação identificado das nanopartículas de solasonina e solamargina foi a apoptose [processo natural de morte celular que costuma estar desregulado nas células cancerígenas e que contribui para sua proliferação descontrolada].
Entre os resultados observados, no modelo de cultura celular 3D a formulação foi capaz de desestruturar completamente as estruturas tridimensionais de células tumorais, demonstrando alta eficácia. No modelo in vivo, com o animal, a nanoformulação reduziu significativamente o volume tumoral com boa capacidade de penetrar os tecidos da bexiga.

Em contrapartida, nas doses mais elevadas dos glicoalcaloides encapsulados, foram observados efeitos colaterais no fígado dos animais, como o aumento das enzimas hepáticas [proteínas produzidas pelo fígado que aceleram reações químicas no organismo], um sinal de possível sobrecarga ou dano ao órgão. “Apesar das partículas serem biodegradáveis e biocompatíveis, o acúmulo temporário delas pode gerar esse tipo de resposta que tende a ser reversível após a excreção ou degradação das nanopartículas. Por isso, embora os resultados sejam muito promissores, é fundamental realizar mais estudos de segurança, especialmente para ajustar a dosagem ideal que seja eficaz contra o câncer e com menos efeitos colaterais”, acrescenta Priscyla.
Câncer de bexiga causou 5 mil mortes no Brasil em 2020

O câncer de bexiga ocupa a 12ª posição entre os tipos de câncer mais frequentes no País, sem considerar os tumores de pele não melanoma [tumor maligno que se desenvolve nas células que não produzem melanina]. Segundo os dados do Instituto Nacional de Câncer (Inca), a estimativa de novos casos para 2025 no Brasil é de 11.370, sendo 7.870 casos relacionados aos homens e 3.500 às mulheres.
Os tipos de câncer de bexiga variam conforme o lugar em que se inicia. O tumor pode ser considerado superficial quando se limita ao tecido de revestimento da bexiga, mas também pode se disseminar através do revestimento da bexiga, invadir a parede muscular e órgãos próximos ou gânglios linfáticos, passando a ser classificado como um câncer invasivo.
“Em 2020, foram estimados cerca de 580 mil novos casos de câncer de bexiga no mundo, aproximadamente 3% de todos os diagnósticos de câncer. No Brasil, no mesmo ano, foram registrados cerca de 5 mil óbitos causados por esse tipo de tumor. Isso reforça a urgência na busca por novas terapias que possam ser utilizadas de forma complementar aos tratamentos já existentes ou até mesmo como alternativas em casos específicos”, argumenta a professora.
Mais informações: [email protected], com Priscyla Daniely Marcato Gaspari
*Com Jornal da USP – Carolina Castro, estagiária sob orientação de Rita Stella.
*Arte de capa – Simone Gomes