“Livre da pressão das urnas, ditadura ignorou justiça social”, diz historiador

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Presidentes Castello Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo (montagem de fotos da Presidência da República) Fonte: Agência Senado

Quando se olha a ditadura militar (1964-1985), um dos focos costuma ser o retrocesso imposto aos brasileiros nos direitos civis e políticos. Quanto aos direitos civis, a sociedade sofreu duras restrições nas liberdades de associação, expressão e imprensa. Em relação aos direitos políticos, os cidadãos foram impedidos de ir às urnas para escolher os governantes.

O historiador Leonardo Weller aponta um terceiro tipo de direito que, embora menos comentado que os outros dois, também foi duramente golpeado pela ditadura: os direitos sociais. De acordo com ele, os generais simplesmente ignoraram problemas como a pobreza e a baixa oferta pública de saúde e educação nos 21 anos em que estiveram no poder.

Weller, que leciona na Escola de Economia de São Paulo, da Fundação Getulio Vargas (FGV), e acaba de lançar em coautoria com o cientista político Fernando Limongi o livro Democracia Negociada: política partidária no Brasil da Nova República (FGV Editora), afirma que a redemocratização do país, há 40 anos, foi a condição básica para que o poder público enfim passasse a agir contra as desigualdades sociais.

Leia, a seguir, trechos da entrevista concedida à Agência Senado:

O que o Brasil perdeu nos 21 anos da ditadura militar?

As maiores perdas foram na área social. No início da década de 1970, o Brasil da ditadura experimentou o chamado milagre econômico, em que a economia cresceu a níveis superiores a 10% ao ano. Os grandes ganhos econômicos, no entanto, não se refletiram na redução da pobreza e das desigualdades. O avanço que se registrou na área social foi desproporcionalmente pequeno em relação ao crescimento econômico. Apenas a classe alta e a classe média alta se beneficiaram do milagre. Em outras palavras, o crescimento do milagre foi excludente.

Além disso, no início da década de 1980, quando a ditadura militar se aproximava do fim, passamos por uma das piores crises da nossa história, um desastre econômico com redução do produto interno bruto (PIB) e descontrole inflacionário. Os indicadores sociais, que já vinham crescendo muito pouco, desabaram. Os militares devolveram um Brasil pior do aquele país que pegaram. A ditadura, em suma, foi um desastre em termos sociais e retardou o nosso avanço.

A área social, então, não foi uma prioridade da ditadura?

Não foi. O foco esteve no desenvolvimento econômico em detrimento do desenvolvimento social. Vejamos, por exemplo, a saúde. Até a Constituição de 1988, a saúde pública esteve ligada ao trabalho formal. Só quem estava empregado conseguia algum acesso à saúde gratuita, por meio do INPS [Instituto Nacional de Previdência Social] e do Inamps [Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social]. As pessoas que não tinham carteira de trabalho estavam excluídas da saúde pública. Esse foi um sistema de saúde vindo da época de Getúlio Vargas no qual os militares preferiram não mexer.

Vejamos, também, a educação. Na ditadura, a educação só melhorou no topo, nas universidades federais. Os ensinos fundamental e médio, por sua vez, pioraram. As décadas de 1960 e 1970 foram um período de transição demográfica no Brasil, com a população crescendo rapidamente. Por essa razão, houve um grande aumento no número de alunos nas escolas públicas, mas sem que houvesse um aumento correspondente no orçamento da educação, que permaneceu praticamente o tempo todo congelado.

Como resultado, no início dos anos 1990, com o Brasil já redemocratizado, o país apresentava indicadores de saúde e educação piores do que os demais países da América Latina.

Correio de Notícias, do Paraná, noticia em 1985 restrições da saúde pública na era pré-SUS (Biblioteca Nacional Digital)

Por que os governos militares não se preocuparam com a área social?

Porque não dependiam do voto popular. Dessa forma, não precisavam fazer aos eleitores promessas de melhoria de vida. Na democracia, ocorre o contrário. Os candidatos presidenciais precisam empunhar a bandeira social se querem conquistar os cidadãos e ser eleitos.

Basta ver alguns dos presidentes que tivemos depois da ditadura. Fernando Henrique, Lula e Dilma executaram políticas sociais que foram virtuosas e efetivamente contribuíram com a redução das desigualdades. No caso de Fernando Henrique, o grande motor de sua vitória foi o Plano Real, que estabilizou a economia e, assim, permitiu ganhos sociais. No poder, ele conseguiu universalizar o acesso à saúde e ao ensino fundamental.

Naquele momento, a questão social ganhou uma relevância tão grande que os nomes do PSDB cogitados para disputar a sucessão de Fernando Henrique foram justamente os seus ministros da Saúde e da Educação, respectivamente José Serra e Paulo Renato Souza. O candidato acabou sendo Serra. Quem venceu a disputa presidencial foi Lula, que, não por acaso, foi eleito e reeleito priorizando justamente o combate à pobreza. Com Dilma, ocorreu a mesma coisa. Foi na democracia que reduzimos a desigualdade social e ampliamos o acesso à saúde e à educação.

Isso significa que existe uma relação direta entre democracia e avanços na área social?

Sem dúvida. Na nossa democracia, mesmo sem um crescimento econômico significativo e até mesmo com estagnação econômica, tivemos grandes avanços sociais. Parece um paradoxo. O que fica claro é que, quando a democracia funciona, os governos entregam políticas públicas que melhoram as condições de vida da população. A situação social do Brasil na ditadura era tão ruim que, quando veio a redemocratização, a melhora se deu a olhos vistos.

Eu enxergo os 20 anos que vivemos de meados da década de 1990 a meados da década de 2010, que incluem os governos do PSDB e do PT, como um período glorioso da democracia brasileira. Na época, tendíamos a ver os governos dos dois partidos como muito diferentes um do outro, praticamente antagônicos. Hoje, olhando para o passado, enxergamos que não havia tanta diferença assim e podemos classificá-los como integrantes de um único bloco histórico. Havia, claro, disputa entre os dois partidos, mas eles eram competitivos justamente porque se dedicaram com afinco à área social.

José Sarney assume Presidência da República, em março de 1985: na democracia, Brasil passou a agir contra desigualdade social (Arquivo do Senado)

Que características da ditadura o Brasil democrático conservou?

A redemocratização não foi uma ruptura ou uma guinada de 180 graus, mas uma transição. O Brasil que emergiu em 1985 conservou muita coisa do Brasil pós-1964. Posso citar os congressistas. Grande parte daqueles que haviam pertencido à Arena, o partido de sustentação dos militares, se manteve atuante e em destaque após a redemocratização, como Antonio Carlos Magalhães, Marco Maciel, Paulo Maluf e o próprio José Sarney, que foi o primeiro presidente civil após a ditadura. Alguns deles, inclusive, se filiaram ao PMDB, que sucedeu o MDB, o partido de oposição aos militares. Na Assembleia Nacional Constituinte, em 1987 e 1988, os políticos mais conservadores e oriundos do regime militar se uniram naquele grupo suprapartidário e majoritário que ficou conhecido como Centrão, cujo nome ressurgiu recentemente, resgatado pela imprensa. É por essa razão que o Congresso tende a ser mais conservador e mais à direita que o presidente da República, à exceção de Collor e Bolsonaro.

A própria Constituição de 1988 trouxe elementos da ditadura, como a articulação entre os Poderes da República. Antes do golpe de 1964, o Poder Legislativo era relativamente mais poderoso do que o Poder Executivo, o que levou a vários impasses políticos nas épocas de Getúlio Vargas e João Goulart, por exemplo. Na ditadura, essa correlação de forças se inverteu, e o Executivo ficou mais poderoso que o Legislativo. Um dos sinais da preponderância do Executivo era a prerrogativa que os presidentes ditadores tinham de baixar decretos-leis. Caso o Legislativo não os votasse, os decretos-leis passavam a valer automaticamente. A solução que apareceu na Constituição foi a medida provisória, um instrumento parecido com o decreto-lei. A diferença é que a medida provisória redigida pelo presidente caduca caso não seja votada pelo Legislativo. Ela, que existe até hoje, não chega a ser tão autoritária quanto o decreto-lei, mas tem raízes na ditadura. Depois da redemocratização, a relação entre o Executivo e o Legislativo ficou mais parecida com a que havia na ditadura do que a que havia no período democrático de 1945-1964.

Ministros do primeiro governo Lula em 2003, José Graziano, Benedita da Silva e Ciro Gomes visitam Guaribas (PI), uma das primeiras cidades em que o Programa Fome Zero foi lançado (Ana Nascimento/Agência Brasil)

Fora da política institucional, também há aspectos da ditadura militar que ainda estão presentes no Brasil de hoje?

Embora não seja um especialista no tema, eu diria que a segurança pública que temos hoje vem da época da ditadura. As polícias, que haviam sido um poderoso instrumento de repressão nos governos militares, não se democratizaram. Basta ver, por exemplo, a Justiça Militar, que recorrentemente absolve militares, inclusive policiais, envolvidos em atos criminosos. Segundo os especialistas, essa é uma das razões pelas quais o governos da Nova República até hoje não conseguiram entregar políticas públicas de qualidade na área da segurança, ao contrário do que aconteceu na educação, na saúde e no combate à pobreza.

Por que é importante que os brasileiros conheçam a história da ditadura militar e da redemocratização?

Nós precisamos conhecer essa história para dar valor à nossa democracia. Quando comparamos o presente com o passado considerando os avanços não apenas nos direitos civis e políticos, mas também nos direitos sociais, enxergamos claramente que é muito melhor viver numa democracia do que numa ditadura.


Pauta e reportagem: Ricardo Westin

Edição: Valter Gonçalves Jr.
Pesquisa e edição de fotos: Ana Volpe
Edição de fotos e multimídia: Bernardo Ururahy

Imagem de capa: Presidentes Castello Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo (montagem de fotos da Presidência da República)

*Com Agência Senado

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