A Nova Geografia Informacional do Brasil e a Disputa pela Formação do Eleitor

Redes sociais e mídia tradicional criam ecossistemas cognitivos paralelos

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Foto: IA

A crescente divergência entre quem se informa pelas mídias tradicionais e quem se informa pelas redes sociais revela uma transformação estrutural no comportamento político brasileiro. Os dados mais recentes da pesquisa Genial Quaest de novembro de 2025 mostram que os dois grupos não apenas consomem informações distintas, mas vivem em ecossistemas cognitivos diferentes. A distribuição dessas fontes não é acidental. Ela atravessa idade, renda, escolaridade, região e gênero, moldando disposições políticas de maneira profunda e muitas vezes irreversível.

A principal consequência é que o Brasil deixou de ter um sistema informacional nacional unificado e passou a operar em esferas comunicativas paralelas. Essa clivagem não é apenas tecnológica. Ela é ideológica, geracional, econômica e territorial. Compreender esse processo é indispensável para interpretar o voto brasileiro, mas, sobretudo, para entender

por que a esquerda teme a desintermediação digital e por que a direita se fortalece nesse novo ambiente.

A desintegração da mediação tradicional

Muniz Sodré, em A Máquina de Narciso, mostra que o sistema mediático brasileiro foi historicamente construído como um circuito centralizado, no qual poucos conglomerados definiam a agenda pública. Esse modelo oferecia previsibilidade às forças políticas tradicionais, que sabiam operar dentro dos limites simbólicos impostos pelos grandes veículos.As redes sociais romperam essa lógica.

Plataformas digitais criaram circuitos paralelos de circulação de informação, independentes das hierarquias jornalísticas.

O resultado é a erosão da mediação tradicional e a ascensão de uma ecologia informacional mais caótica, descentralizada e sensível às percepções diretas do eleitor.

John Keane, em seu livro The Media and Democracy, observa que democracias contemporâneas atravessam uma fase pós-jornalística, marcada pela perda da autoridade cognitiva da imprensa e pela multiplicação de espaços horizontais de disputa narrativa.

No Brasil, esse processo ocorre de forma acelerada e desigual. Jovens, renda média, regiões mais urbanizadas e segmentos de serviços migram para o digital, enquanto públicos mais velhos, vulneráveis e dependentes da televisão permanecem na mediação tradicional.

Quando a Quaest identifica que consumidores de redes sociais tendem a posições de direita, enquanto consumidores da mídia tradicional se inclinam à esquerda, ela apenas confirma empiricamente o que a teoria já havia antecipado:

esferas informacionais distintas produzem culturas políticas distintas.

Plataformas digitais como arenas de poder político

Yu Ouyang e Richard Waterman, em Trump, Twitter, and the American Democracy, mostram que redes sociais permitem que lideranças fora do establishment falem diretamente ao eleitorado, deslocando o centro de gravidade do poder comunicacional. O fenômeno observado nos Estados Unidos tem paralelo direto no Brasil: figuras conservadoras, governadores de perfil duro e comunicadores independentes transformam o digital em infraestrutura de mobilização.

Essa dinâmica se acentua porque existe um desalinhamento profundo entre a realidade percebida pelo eleitor e o enquadramento produzido pela mídia tradicional. Eleitores que sentem insegurança, deterioração de serviços públicos, medo do futuro econômico e desconfiança institucional não se reconhecem na retórica jornalística dominante. As redes, diferentemente da mídia tradicional, não filtram esses sentimentos. Elas os amplificam.

Yochai Benkler, Robert Faris e Hal Roberts mostram em Network Propaganda que redes digitais produzem ecossistemas informacionais coesos, não como bolhas artificiais, mas como estruturas que reforçam identidade, confiança interna e oposição a narrativas externas.

Por isso a direita prospera no digital: ela opera de modo orgânico, distribuído, conectado ao descontentamento popular, sem depender de uma coordenação centralizada.

A estrutura demográfica do comportamento informacional

O comportamento informacional brasileiro reflete uma profunda clivagem social.

Quem depende de televisão aberta, rádio ou jornais impressos tende a permanecer dentro da moldura simbólica que favorece a esquerda, pois essa mídia opera sob lógica institucional tradicional. Já quem se informa pelas redes habita ambientes marcados por crítica, vigilância difusa e circulação de indignação, terreno fértil para posições conservadoras.

A tese de doutorado de Lídia Raquel Herculano Maia, denominada A política dos eleitores no Facebook dos candidatos: Uma análise de dispositivos interacionais construídos nas eleições (Unisinos, 2019), mostra como ambientes digitais permitem que eleitores construam sentidos políticos coletivos sem tutela institucional, produzindo interpretações autônomas da realidade. Isso ajuda a explicar por que segmentos conectados resistem ao que percebem como narrativas oficiais da grande imprensa.

Esse contraste é amplificado por outro elemento fundamental: evidências empíricas internacionais. O estudo de Thomas Fujiwara, Karsten Müller e Carlo Schwarz, The Effect of Social Media on Elections: Evidence from The United States, publicado no Journal of the European Economic Association em 2024, demonstra que

a entrada massiva de redes sociais na arena eleitoral aumenta a competitividade para candidatos antiestablishment, reduz a capacidade de enquadramento dos grandes veículos e altera o comportamento político de forma mensurável.

A transição brasileira se encaixa perfeitamente nesse padrão.

A convergência das pesquisas indica que não se trata apenas de mudança tecnológica, mas de reorganização profunda dos modos de percepção política.

A disputa pelo controle cognitivo do eleitorado

Dentro desse contexto, não surpreende que setores da esquerda defendam projetos de regulação das plataformas digitais. O discurso público se ancora no combate à desinformação, mas os dados revelam outra motivação: a preservação do monopólio narrativo que a mídia tradicional ainda garante.

Andrew Chadwick, em The Hybrid Media System: Politics and Power, mostra que a passagem de um sistema mediático centrado na grande imprensa para um arranjo híbrido redistribui o poder comunicacional, reduzindo a capacidade de governos e grandes veículos de definir sozinhos o que é politicamente relevante. Plataformas digitais, ao se combinarem com a mídia tradicional, deslocam a autoridade dos antigos intermediários e abrem espaço para uma produção de significados mais dispersa, conflitiva e difícil de controlar.

Essa perda de intermediação tradicional atinge diretamente os atores políticos que dependiam dela para moldar a opinião pública. Quando a autoridade cognitiva da grande imprensa se fragmenta, aqueles que construíram sua hegemonia apoiados nesse filtro institucional passam a enfrentar um ambiente onde narrativas concorrentes emergem sem supervisão centralizada.

É nesse ponto que o comportamento estratégico da esquerda se torna compreensível. Isso explica por que o governo e estrategistas progressistas pressionam pela regulação das redes. A disputa não é apenas sobre conteúdos específicos. É uma disputa por quem tem o direito de construir a realidade política do país.

Caminhos para a direita: consolidar vantagem informacional

Se a direita deseja transformar sua vantagem nas redes em força política sustentável, precisa abandonar a improvisação e estruturar um projeto claro. Isso envolve:

  • profissionalizar a produção de conteúdo de alta densidade informativa e formativa;
  • construir ecossistemas de mídia digital que funcionem de modo contínuo;
  • desenvolver lideranças regionais com comunicação direta e regular;
  • articular pautas que dialoguem simultaneamente com classe média conectada e segmentos populares que migram gradualmente do tradicional para o digital.

Não se trata de replicar estratégias fragmentadas, mas de consolidar uma arquitetura política digital permanente.Inscreva-se

Caminhos para a esquerda: recuperar legitimidade sem tutela informacional

A esquerda enfrenta um desafio estrutural: não pode recuperar credibilidade tentando controlar ou restringir as redes. Cada tentativa de regulação produz efeitos simbólicos devastadores, reforçando a percepção de que tenta limitar a autonomia cognitiva do eleitor.

Se deseja sobreviver no novo ecossistema, precisa:

  • reconstruir presença digital relevante;
  • falar com o eleitor jovem e conectado;
  • abandonar a crença de que a televisão continuará garantindo hegemonia narrativa.

Caso insista no caminho da regulação, acelerará a migração de seus antigos eleitores para alternativas conservadoras.

Um país dividido pelo modo de acesso à informação

O Brasil está dividido por modos de acesso à informação. Não é apenas esquerda contra direita. É televisão contra internet. É tutela contra autonomia. É narrativa centralizada contra ecologia distribuída.

O eleitor que consome mídia tradicional enxerga um país razoavelmente estável. O eleitor que habita as redes percebe ruptura, insegurança e decadência. Não votam diferente por acaso. Vivem em mundos distintos.

Como advertiria Muniz Sodré, quando sistemas informacionais se fragmentam, a própria natureza da democracia se altera. No Brasil, essa transformação já se consolidou. O que se disputa agora é qual força política conseguirá traduzir essa nova ecologia informacional em hegemonia duradoura.


Livros citados

  1. Muniz Sodré – A Máquina de Narciso
  2. Yu Ouyang e Richard W. Waterman – Trump, Twitter, and the American Democracy
  3. John Keane – The Media and Democracy
  4. Yochai Benkler, Robert Faris e Hal Roberts – Network Propaganda
  5. Andrew Chadwick – The Hybrid Media System: Politics and Power

Pesquisas acadêmicas citadas

  1. Lídia Raquel Herculano Maia – A política dos eleitores no facebook dos candidatos: Uma análise de dispositivos interacionais construídos nas eleições presidenciais de 2014 – Tese de Doutorado em Comunicação – Unisinos, 2019
  2. Thomas Fujiwara, Karsten Müller e Carlo Schwarz – The Effect of Social Media on Elections: Evidence from the United States, Journal of the European Economic Association, 2024
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