Poucas histórias olímpicas conseguem ser tão absurdas quanto uma maratona ocorrida durante as Olimpíadas de 1904 em St. Luis, nos Estados Unidos. Se hoje nos orientamos pela segurança e pelo espírito esportivo, o evento em questão foi um exemplo antidesportivo claro a não ser seguido na história olímpica moderna.
Entre envenenamento por estricnina, perseguições de cães de rua, desidratação proposital e trapaça automotiva, a prova de 30 de agosto de 1904 não apenas coroou o pior tempo da história (3h28min53s), como alimentou críticas pesadas que colocaram a modalidade em xeque dentro do movimento olímpico.
Poeira, calor e “ciência”
A temperatura em St. Louis girava em torno de 30°C, com umidade sufocante, esse fato por si só já dá uma dimensão da desumanidade com a qual a prova foi organizada. O percurso — cerca de 40 km (a distância de 42,195 km só seria padronizada em 1908) — consistia em estradas de terra não pavimentadas, repletas de colinas difíceis.
O pior fator, porém, foi humano. O organizador-chefe, James Sullivan, decidiu usar a prova como um experimento de “desidratação controlada”, acreditando que limitar água poderia aumentar o desempenho.
Imagine ter a sua disposição apenas um ponto de água em todo o trajeto (na marca aproximada dos 19 km).
Carros de oficiais e médicos seguiam os corredores, levantando nuvens de poeira tão densas que o atleta William Garcia foi encontrado inconsciente com hemorragia estomacal, causada pela combinação entre poeira e desidratação severa. Ele quase morreu antes de receber socorro.
O elenco
Dos 32 atletas que participaram, apenas 14 terminaram a prova. O “pelotão” era uma junção entre atletas preparados, amadores entusiasmados e personagens que entraram para o folclore esportivo.
O “vencedor” de carona
O primeiro a cruzar a fita foi o estadunidense Fred Lorz, aclamado pelo público e até fotografado com Alice Roosevelt, filha do presidente Theodore Roosevelt.
Acontece que Lorz foi um trapaceiro. Ele teve cãibras no km 14 e entrou em um carro de apoio, percorrendo cerca de 17 km motorizado. Nesse meio tempo, o carro quebrou e ele voltou a correr “de brincadeira”. Ele só foi desmascarado minutos antes de receber a medalha. Assim, Lorz foi desclassificado e banido por um ano — pena depois revogada.
O verdadeiro campeão

O vencedor oficial foi Thomas Hicks, um britânico radicado nos EUA. Contudo, a conquista é um retrato dos primórdios do doping. Exausto, a partir do km 24 recebeu de seus treinadores:
- pequenas doses de sulfato de estricnina (veneno usado como estimulante),
- claras de ovo cruas,
- e brandy (um destilado de vinho ou suco de frutas fermentado).
Eles também não lhe deram água. Hicks cruzou a linha carregado, alucinando, arrastando os pés e prestes a desmaiar. Relatos da época afirmam que ele perdeu cerca de 3,5 kg durante a prova.
O carteiro

O cubano Félix “Andarín” Carvajal era um dos favoritos do público. Ele trabalhava como carteiro e arrecadou dinheiro correndo em praças de Havana, mas perdeu tudo em um jogo de dados em Nova Orleans e teve que pedir carona até St. Louis.
Ele correu usando sapatos comuns (que abriu na faca para ventilar) e calças sociais.
Morrendo de fome, parou em um pomar no caminho e comeu maçãs podres, que acabaram lhe rendendo cólicas. Ele ainda se deitou para descansar, tirou um cochilo, e mesmo assim terminou em 4º lugar.
A primeira participação africana
A maratona contou com Len Taunyane e Jan Mashiani, do povo Tswana, da África do Sul. Eles estavam na cidade por causa da Exposição Universal e se tornaram os primeiros africanos negros a disputar uma prova olímpica.
Taunyane, que corria descalço, poderia ter brigado pelo pódio, mas terminou em 9º lugar, dado que foi perseguido por cães de rua por mais de 1 km fora da rota.
O veredito
Após a prova, James Sullivan e outros oficiais classificaram a maratona como uma modalidade “indefensável” do ponto de vista médico. Houve forte pressão para que o evento fosse repensado — e, em alguns círculos, até abandonado.
A modalidade só se manteve no programa graças à edição seguinte, os Jogos Intercalares de Atenas (1906), muito mais organizada, o que restaurou a credibilidade da prova.
St. Louis 1904 permanece como uma memória esquisita, de uma época em que o esporte ainda precisava de regulamentação, segurança e, acima de tudo, bom senso.
Quadro de medalhas
| Posição | Atleta | País / Equipe | Tempo | Notas |
|---|---|---|---|---|
| Ouro | Thomas Hicks | EUA | 3:28:53 | Dopado com estricnina |
| Prata | Albert Corey | Equipe Mista* | 3:34:52 | Competiu pelo Chicago AA |
| Bronze | Arthur Newton | EUA | 3:47:33 | — |
| DQ | Fred Lorz | EUA | — | Desclassificado (usou carro) |
* Registrado pelo COI como medalha de equipe mista, já que Corey era francês, mas competiu por um clube dos EUA.









