Entro no mercadinho, estou com pressa, quero só um pote de sorvete, pego na geladeira, vou pagar e me ligo na conversa rolando entre o dono e outro cliente.
“Porque você sabe que esses países de esquerda não produzem nada…” No susto, desvio o olhar do balcão e estico o braço com o celular já pronto para o plin do banco.
Não falem comigo, pelo amor de Deus, penso calado, quieto, silencioso, respirando com cuidado para não chamar a atenção e, meu Jesus!, ser convidado para o picadeiro. Não estou aqui. Juro. Digo pra mim.
“O senhor viu como aquela mulher ontem queria convencer a gente como é que se rouba?” Como é que é? Minha cara de espanto assusta o dono, que me fez a pergunta numa raquetada surpresa.
“Acho que o senhor me confundiu com alguém. Não era eu, não. Ontem não vim aqui.” Era a mais pura verdade. Respondi de pronto, a bola nem quicou. Queria me livrar logo.
“Uai, então era uma pessoa muito parecida, olha isso, que coisa, muito parecida mesmo.” Que seja. Paguei e pé na areia. Um rabo de discurso me alcançou ainda. “Porque no Brasil só tem ladrão e vagabundo, ninguém quer trabalhar…”
Na entrada do prédio, fiquei perdido porque o meu reconhecimento facial me desconheceu três vezes. Respirei, suspirei, assoprei meus olhos com a boca torta e consegui entrar. Chegando no apartamento, fui direto pro banheiro.
Já briguei bastante para restabelecer a verdade. O tempo me ensinou que verdade agora só existe no plural. Somos quem somos, nossas contradições e as verdades. Vivemos em uma sala de espelhos. Morremos de mentira.
Essa singularidade dos tempos atuais me atordoa. De que adianta debater com quem não quer ouvir e não para de falar? Ouço a ventania das opiniões enquanto os fatos e acontecimentos se esfarelam a olhos vistos.
Ando sem certeza e com muita preguiça. Sei dos meus defeitos, porém há gente demais sabendo também, e na mesma proporção com que se veem infalíveis e sabedores de tudo.
Acho todos idiotas, mas não há dúvida pra eles de que o idiota sou eu. Eles têm toda razão. Eu perdi a minha. Eu quero estar em outro lugar, mas a minha sobrevivência é o Mercadinho. E vice-versa.
Deus é muito irônico. Diabos!