Eu me lembro que em época de quaresma minha mãe sempre recomendava: “Não fica até tarde na rua não, meu filho! Quaresma é tempo de lobisomem, de cachorro doido e do Coisa Ruim andando sem rumo por aí e fazendo maldade pras pessoas!”
A história que vamos contar é típica de assombração, ou melhor, de uma casa mal-assombrada. Por isso que me lembrei da minha saudosa mãe, que já partiu pra outra vida faz tempo.
Não se sabe ao certo como tudo começou. Mas o que ninguém pode esquecer é das pedradas incessantes arremessadas pelo vivente do outro mundo. Coisa assim de dar arrepios e pavor. A época: talvez outubro de 1967; o local: rua principal, perto da praça, quase na esquina, num casarão antigo construído no tempo do nascimento da cidade; região: Estrada de Ferro de Goiás.
Tratava-se de uma pensão bastante movimentada, no passado. Mas dizer que antes lá era mal-assombrado é faltar com a verdade. Fala-se que antigamente houve ali alguns assassinatos e inclusive um suicídio. Isso há muito tempo, lá pela década vinte ou trintada da era mil e novecentos, não se sabe ao certo.
A notícia da construção da estrada de ferro deu margem à vinda de grande contingente de pessoas, oriundas de todos os quadrantes do país. Gente de diferentes espécies: umas de excelente qualificação, que chegavam para ajudar a edificar a cidadezinha; outras, constituídas de criminosos, maus elementos, que não tinham nada a perder e que espalhavam o medo e o anarquismo pelo arraial.
Verdade que essa corrida humana gerada pelo progresso contribuiu para o imediato crescimento da povoação. Mas por outro lado, esse processo de miscigenação que se observava na origem do povo do lugar foi desencadeado em meio a muitas disputas, muitos conflitos e crimes de diversa tipificação, como estupros, assassinatos, roubos etc., atraindo uma carga negativa de proporções inimagináveis.
Voltando ao assunto da casa mal-assombrada, conta-se que no início era um gemido forte e triste, que se fazia ouvir na calada da noite, vindo das profundezas do mundo desconhecido. Dava a impressão de que estava num quarto perto da cozinha. No entanto, procurado por todos os cantos com uma luz de lamparina, nada era encontrado.
Fala-se também sobre um fogo esverdeado que aparecia no horário lusco-fusco, no canto do quintal da casa, beirando o muro da divisa. Um dia resolveram escavar naquele local, fizeram um baita buraco e nada conseguiram encontrar.
Em outra oportunidade, alguém da casa foi tirar água da cisterna puxada no sarilho tocado à munheca. Alçado o balde, dentro dele e junto com a água veio uma cruz de madeira de uns dez centímetros, confeccionada manualmente com madeira branca e enrolada em um cordão, ligando as partes da cruz.
E a partir daí começou a cair pedras. A primeira vez foi quando a lavadeira, uma mulher baixinha e branquinha, estava lavando roupa. A pedra tirou um fino em sua cabeça e esborrachou-se no batedor de roupa. Ela quase morreu de susto e de medo.
Depois os atos de arremesso de pedra foram-se tornando mais frequentes. Passaram a cair pedras também nas panelas. Comida quase pronta, panelas fervendo e enchendo-se de pedregulhos, que não se sabia de onde vinham e por quem eram jogados.
A dona da casa, que lá residia com suas duas filhas, um filho e netos, imaginando-se que aqueles incidentes eram fruto da iniciativa de alguns moleques da rua, achou por bem dar parte ao delegado. A autoridade, no entanto, não pôde dar jeito. Parece que produziu efeito contrário. Aí que pedra cantava por tudo quanto era canto. Caía nas prateleiras, nas vasilhas de doce, nas camas, em todos os lugares da casa.
Até para dormir ficou difícil. Quando deitavam, as camas chacoalhavam tão forte que parecia terremoto. Conversar deitado ou acender as luzes não era permitido. Pedra comia feio. Se se quisessem dormir qualquer tanto sem ser importunados pelas pedras tinha de ser em silêncio e com as luzes apagadas.
Chegava alguém para rezar, dizendo que não tinha medo daquilo e que ia afugentar o tal bicho-mau, de repente era obrigado a sair dali correndo, ante a iminência de levar de presente um galo na testa.
Houve um momento que chamou a atenção de todos. Ao iniciar a refeição – pedra batendo aqui e acolá –, abriram a bíblia e a deixaram exposta sobre a mesa enquanto comiam. Fez-se silêncio total. Nenhuma pedra caiu durante aquela ceia. E puderam comer em paz. Daí em diante, a bíblia ficava sempre aberta por ocasião das refeições, protegendo os moradores.
A notícia corria. Pessoas da comunidade e até de outras localidades faziam vigília na frente da casa. Dois senhores corajosos chegaram ofegantes à porta da sala e um deles foi logo dizendo: “Diz que aqui tá caindo pe…”. Porém não chegou a completar a frase. Um tijolo foi arremessado a seus pés, com toda força, desmanchando-se no impacto com o chão. E os dois valentes companheiros saíram em disparada.
Padres, pastores evangélicos, autoridades espíritas revezavam-se em preces e orações, usando diferentes técnicas para espantar aquele ser indesejado que roubava a paz de uma família de bem e aterrorizava toda a comunidade. Contudo, nada dava jeito. Às vezes parecia que ia dar certo: o trem permanecia em silêncio durante as encomendações. Mas às vezes ficava pior: os contra-ataques se multiplicavam na mesma intensidade das rezas. E pedra zunia por todos os lados. Muita gente dizia: “Não é assombração não, é o Capeta!”.
Numa bela noite, um grupo de religiosos postou-se na praça ali perto. Orava e cantava bonitos hinos. Ao final, os participantes do grupo acharam por bem visitar a casa mal-assombrada com a reta intenção de exorcizar o demônio que lá havia feito morada sem ter sido convidado. Chegaram, oraram com fé, lavaram a casa para afugentar os males e se puseram a deixar o local com a consciência em paz, crentes de que o Coisa Ruim tinha escafedido de lá.
Ledo engano. Terminada a reza, pedras pequeninas começaram a cair devagarzinho como goteiras de chuva fina. E foram amiudando a velocidade e aumentando de tamanho. E o pessoal, ouvindo aquilo, iniciou uma correria lenta e gradual, assim meio disfarçada. E pedra comeu atrás dos bem intencionados rezadores, que viraram um risco rua afora.
Quase dois meses nessa agonia. Ninguém na casa gozava de sossego. Todos intimidados e traumatizados. Muita gente orou com fé, tentou exorcizar e rogou a Deus o retorno da paz para aquela família.
Num belo dia, a dona da casa, num ato extremo – já no limite do desespero –, disse aos gritos, com voz firme, ao vivente do outro mundo: “Tá pensando que nós estamos achando graça? Pode ir embora! Tá expulso, em nome de Jesus!”. E o tal trem desapareceu, para alívio de todos. Ufa!… Nunca mais se teve notícia.