GERALDONA, UMA FIGURA POPULAR

Geraldona e a memória de uma vida marcada pela resistência

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Antigamente era comum encontrar nas famílias de classe média um “bobo” ou uma “boba”, chamados de “Criados” ou “Criadas”, uma espécie de “filhos de criação” adotados pelos patriarcas, os quais, na maioria dos casos, não passavam de empregados vitalícios que desempenhavam todos os trabalhos braçais e pesados da casa e das imediações, em troca apenas da comidinha diária, para matar a fome, e da roupa remendada, para cobrir o corpo. Botina e chinelo, somente em alguns casos. Hoje, dificilmente se vê algum resquício que nos lembra esse passado distante. Ainda bem que existem hoje as casas de acolhimento, que lhes proporciona melhores condições de vida.

            Havia também os “bobos de rua”, sem donos, maltrapilhos, que normalmente eram o foco das pessoas maldosas, gente desqualificada e que nada tinha que fazer na vida, a não ser provocar a ira desses coitados que perambulavam para lá e para cá. Geraldona integrava esse bloco. Vamos à sua história!…

            Demente. Doida varrida. Rasgava até dinheiro, porque dinheiro pra ela não tinha o menor valor. Figura popular na cidade. Parte integrante da história e da cultura local.

            O carro de som passou na rua anunciando que o enterro ia ser a uma hora da tarde. Duvido que alguém vá se preocupar com ela (Pensei). Mas eu estarei lá.

Pobre e abestalhada… Às vezes servia de galhofa, às vezes atraía carinho e afeto. Todo o mundo ria dela. Quer dizer: nem todos. Havia alguns, indiferentes, e outros, de coração mole e justo, que saíam em sua defesa, embora com raro sucesso.

            Vivia às turras, xingando e correndo atrás dos moleques que mexiam com os seus brios. Sempre armada. Pedaço de pau em punho, mas dizia que era pra espantar cachorro. Vida custosa. Pouca alegria. A maior parte do tempo só enfezada. Não combinava com a irmã nem com as sobrinhas. De homem não gostava de jeito nenhum. Tinha medo. Se falasse em namoro com ela, saía disfarçada, resmungando.

            – Ô Geralda doida!

            – Vá pro diabo, capeta! Seu pai não te deu educação não?

            Dentes bons e afiados, que mordiscavam a própria pele, até dar no sangue; braços fortes e mãos pesadas, que esmurravam a própria cabeça; cabeça de ossificação segura, que não trincava nem doía ao bater seguidas vezes num poste ou numa parede, pra fazer pirraça aos inconvenientes que não a deixavam em paz; mamilos de borracha, que não se arrebentavam com seus puxões bruscos e incontroláveis, quando se via acuada pelas ofensas de seus desafetos: pivetes irresponsáveis ou marmanjos barbados que não tinham um pingo de consideração.

            Coração amolecido e bom cuidava dela. Cedo, chegava à casa de um e tomava café: pão bem recheado com margarina e um copo de leite com café. Copo grande, quase derramando. O almoço, noutra casa. Merenda, mais adiante. Janta, já perto do pouso, pra fechar a jornada antes do anoitecer.

            Um banho de vez em quando. Raridade. Inimiga de água. Pés descalços, dedos abertos e rachaduras por todos os lados. Roupa suada, de uso de semanas e semanas. O saco que conduzia às costas não era pesado. Dentro, apenas alguns bagulhos, que não serviam para nada. Troços que eram catados pelos caminhos do sem-fim. Assim mesmo, vez ou outra se mostrava vaidosa.

            – Picida, cê dá banho ne mim?

            – Pode entrar debaixo do chuveiro e começar a ensaboar. Jazinho eu vou, Geraldona!

            – Rala meus pé?

            – Ralo, pode ficar tranquila.

            – Passa esmalte?

            – Passo…

            Antes ela não era doida. Nem apresentava qualquer indício de desvio da mente. Jovem e vigorosa. Ficou desse jeito quando foi violentada. Isso o que ela contava. Dia e noite falando só naquilo, de casa em casa, chorando, xingando e jogando praga no malfeitor. E aí só foi agravando cada vez mais, até chegar ao ponto que chegou.

            – Ele correu atrás de mim, me derrubou, eu gritei e zunhei e escapuli. Mas não adiantou: ele correu atrás, rasgou a minha roupa, bateu ne mim, aí eu tive medo e fiquei quieta. Ele me estrupou. Eu gritava de dor, mas não adiantou nada. Ninguém escutou.

            – Ninguém acudiu?

            – Acudiu não.

            – Onde foi isso?

– Foi lá na beira do corgo. Eu vinha sozinha lá da casa da minha tia, já de tarde. Não tinha ninguém pra ver nem pra escutar.

            Com voz quase suplicante, ela pediu que queria passear na sua terra natal, ali não muito longe. Há tempo ela vinha repetindo esse pedido. Vinte anos fazia que lá não botava os pés, desde que foi levada embora pelos parentes. Houve uma oportunidade real. Caminhonetinha de carroceria. Ainda bem, pois junto comigo e a minha esposa, na cabine, enjoava o estômago, por isso ali não podia viajar. Mesmo assim vomitou umas quatro vezes durante a viagem. Cinquenta quilômetros de solavancos, só de ida.

            Por volta do meio-dia, chegamos. Na entrada da cidadezinha, desceu do carro. Queria fazer a pé o mesmo percurso de outrora, visitando as pessoas que lá deixara há muitos anos. Combinamos o local do reencontro. Somente à tardinha é que regressaríamos. Tempo com sobra pra ela matar saudades.

            Menos de duas horas, no entanto, ela chega. Desapontada e triste.

            – Quero ir embora!

            – Que aconteceu, Geraldona? Não está gostando do passeio?

            – Povo tudo estranho. Não conheço ninguém. Cadê o povo que eu deixei aqui quando fui embora?

            Regressamos. Chegamos já era noite. Ao avistar a cidade, ela pediu pra parar o carro. Estava assustada.

            – Quê que é aquilo?

            – Aquilo o quê?

            – Aquele tanto de luzinha pertinho uma da outra.

            – É a iluminação da cidade. Nunca tinha visto?

            – Não!… Bonito, né!… Cumé que eu nunca tinha percebido?

            Pois é, quanto tempo!… Geraldona era nossa conterrânea. Foi personagem da nossa infância. Infância de belas recordações. Ela incluía-se nesse contexto da nossa vida. Idade? Acho que passava dos sessenta. Eu era rapazinho e ela já tinha algumas rugas no rosto. E ela já se fazia acompanhar dos inseparáveis pedaços de pau e o saco sujo nas costas.

            Ainda bem que consegui chegar a tempo de vê-la pela última vez.

Deixe-me pegar a alça do caixão?!… Por favor!… Pelo menos isso!…

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