O fenômeno da “segunda tela” — o hábito de usar o smartphone enquanto se assiste à televisão — deixou de ser curiosidade comportamental para se tornar o eixo de uma reengenharia industrial da narrativa. Relatórios de mercado indicam que o streaming não está apenas competindo por atenção, mas adaptando seus roteiros a um consumo cada vez mais fragmentado. Entre os sintomas mais visíveis desse cenário está a popularização das chamadas novelas verticais, formato pensado para o consumo rápido em smartphones e que traduz, em escala industrial, a lógica da atenção curta.
A tela primária é o celular
A lógica por trás dessa mudança é puramente estatística. Dados do Facebook IQ revelam um cenário drástico: 94% dos espectadores mantêm um smartphone à mão enquanto assistem à TV. Mais do que isso, estudos de eye-tracking (rastreamento ocular) mostram que os olhos do público se desviam da televisão em 47% do tempo.
Essa fragmentação tornou a narrativa visual pura um risco econômico. Se quase metade do conteúdo não é “visto”, mas apenas “ouvido”, plataformas como a Netflix passam a exigir o que a cineasta Justine Bateman chama de “Visual Muzak”: um conteúdo ambiental, funcional e projetado para não exigir foco absoluto.
“Visual Muzak”
O termo, popularizado por Bateman em 2023, faz analogia à “música de elevador” (muzak). Segundo o ensaio “Casual Viewing”, publicado por Will Tavlin na revista n+1 (Inverno de 2025), a indústria vive uma era de “estupidez funcional”. Executivos têm enviado notas de roteiro exigindo que o conteúdo seja “segunda tela o suficiente”.
A diretiva é clara: se o espectador olhar para cima após checar o TikTok e se sentir confuso pela complexidade da trama, a tendência é que ele desligue o aplicativo. Para evitar o abandono, o roteiro deve:
Primeiro: narrar a ação… personagens descrevem o que estão fazendo ou vendo (o fim da regra “mostre, não conte”).
E segundo: eliminar o subtexto… as intenções e emoções devem ser explicitadas em diálogos expositivos.
“A TV tornou-se um rádio com imagens, um mosaico de conteúdo destinado a ser reproduzido enquanto os proprietários dos dispositivos adormecem ou rolam o feed.” — Will Tavlin, n+1.
O Caso Irish Wish
O longa Pedido Irlandês (2024), da Netflix, acabou se tornando o estudo de caso dessa tendência. Em passagens analisadas por críticos do The Guardian, a protagonista descreve cenários (“vistas dramáticas e chuva romântica”) que já estão visíveis, funcionando quase como uma audiodescrição embutida no diálogo original.
Essa “mastigação” narrativa permite que o espectador compreenda toda a trama sem jamais precisar focar o olhar na TV.
No fim, nesse universo, a adaptação das narrativas audiovisuais à lógica da “segunda tela” aparece como uma resposta direta a dados de comportamento do público e às métricas de retenção das plataformas.
Ao priorizar os diálogos explicativos e tramas menos dependentes da imagem, os serviços de streaming ajustam seus produtos a um consumo cada vez mais fragmentado — um movimento que reflete não apenas escolhas criativas, mas também as condições concretas de atenção que hoje moldam o mercado audiovisual.










