Sentado no banco da praça, solitário e bastante concentrado, com os olhos fixos em um ponto específico, estava um senhor aparentemente desconhecido. O fato chamou a atenção dos transeuntes. Cidade pequena é assim: todo o mundo conhece todo o mundo. Aqui em Goiás, quando se trata de pessoa estranha ou mesmo quando não se conhece bem a figura, perguntam: “É fidiquem?”.
Alguém se aproximou e puxou conversa. Logo o desconhecido se viu à vontade e começou a desabafar. Coisas íntimas da sua vida pregressa passaram a aflorar, à medida em que o papo progredia.
Dizia-se contemporâneo do Predinho (também chamado de Sobradinho), foco de sua atenção naquele momento. “Como tá bonito agora, depois de refeito!” – dizia, com um sorriso expressivo nos lábios, que denotava sua incontida satisfação.
Contou que nasceu em 1937, no mesmo ano em que esse “Arranha-céu” foi construído. “Sim, Arranha-céu, pelo menos pra nós, contemporâneos da nossa infância”, esclarecia. A cidadezinha era muito pequena, uma simples corrutela. O Largo da Igreja era o ponto central, onde, além da capela, local em que o povo se reunia à espera do padre que vinha de longe para celebrar as missas, só existia uma cruz de madeira, como marco oficial da fundação do povoado.
Fez uma pausa, respirou fundo e continuou com o seu desabafo… “Cresci aqui, correndo pra lá e pra cá e brincando a valer. O Sobradinho era nosso portentoso Arranha-céu. Grande orgulho para todos nós. Era uma alegria sem tamanho quando o dono permitia que nós, meninos ainda, subíssemos a escada de madeira pra visitar o compartimento do segundo andar e olhar pela janela, lá embaixo.”
Contou ainda o nobre senhor que por muito tempo, ali nas imediações, mais propriamente à sombra do Predinho, o local era transformado em praça de brinquedos, onde a meninada se reunia para extravasar. Brincavam de tudo quanto era coisa, até de esconde-esconde. Com as meninas, a melhor brincadeira era a de passar anel. Muito romântica. Além do mais, proporcionava a oportunidade para arranjar namoricos.
Consistia a brincadeira no posicionamento de todos, meninos e meninas, rapazes e moças, sentados bem juntinhos e de mãos postas sobre os joelhos. Um dos participantes vinha com o anel preso nas mãos, fazendo-as passar devagar e de maneira carinhosa por dentro das mãos de cada um dos outros participantes. E dentro de uma delas, normalmente a de simpatia de quem o passava, o anel era deixado discretamente. No final, a pessoa perguntava a qualquer um dos integrantes: fulano, com quem está o anel? Se a pessoa acertasse, era ela quem devia passar o anel novamente; se errasse, recebia um castigo: recitar uma poesia, latir feito cachorro, pular como sapo etc. E aí, quem estava com o anel escondido iria passá-lo outra vez.
Contudo, o que mais emocionou aquele senhor foi o relato marcante de como conheceu o amor de sua vida. Relatou que estavam ambos saindo da adolescência. Ele morava com os pais logo abaixo do Predinho, quase em frente; ela residia também com os seus pais na rua que ficava do lado de cima. Passando pela rua, era só contornar o Predinho para chegar à casa de um ou do outro. Mas havia uma passagem secreta, entre muros, pelos fundos, em que eles chegavam mais rápido. Foram alguns anos nessa peleja gostosa, até que o namoro virou coisa séria, e se casaram. E para encurtar o caso, esse casamento já está beirando os sessenta anos de existência.
Logo que se casaram, saíram do lugarejo para estudar fora e ganhar a vida. Voltavam de vez em quando, para visitar parentes e matar saudades. Lá longe, era obsessiva a vontade de rever o palco de sua infância: primeiramente, o Predinho; depois, o Poço da Pedra, a um quilômetro do povoado, itinerário que fazia a pé, sei lá quantas vezes ao dia, junto com os companheiros de aventura; o Poço do Jacaré, no Córrego das Vacas, que ficava do outro lado, banhando a corrutela; o Lajeado, no mesmo córrego, porém um pouco mais acima, onde os entreveros com as lavadeiras de roupa aconteciam quase todos os dias, na disputa pelo melhor local; a Chácara do Alcides Pereira, povoada de juritis, inhambus, pombas-do-bando, rolinhas, onde a garotada constantemente armada com bons estilingues fazia a festa, enchendo as capangas; a Tapera do Ermelino, farturenta em goiabas saborosas, vidrentas e crocantes, e em mangas comuns e coração-de-boi de dar água na boca; o cerrado que dava para o Rio Preto e os pés de serra da redondeza, amarelados de gabirobas maduras; o Poço do Olaria do Cipriano, onde não raro e sem muita dificuldade se conseguiam colocar no gancho improvisado de madeira pelo menos umas quatro tubaranas e outras tantas pirapitingas, afora aqueles lambaris gigantes que faziam a pessoa lembrar de uma frigideira no ponto, com a gordura pipocando.
E numa dessas vindas, mais precisamente no finalzinho do século passado, a decepção do visitante foi tamanha que o obrigou a derramar copiosas lágrimas. “Cadê o Sobradinho?” – era a pergunta que brotava solta do seu coração. É que, no local do símbolo histórico, encontrou apenas o vazio de um lote vago entregue ao mato que crescia viçoso, no centro da cidade.
Desolado, dizia a si próprio: “Demoliram o sobrado!… Atropelaram a história do lugar!… Mataram as lembranças do meu povo!… Frustraram as fantasias e os sonhos de muita gente!… Deixaram sequelas no coração das pessoas que edificaram a cidade!… O que haverá de ser de um povo que não tem história para contar?”.
É importante mencionar que depois desse fato, o visitante passou muito tempo sem voltar àquele local. Tudo havia perdido o sentido. Sem o Sobradinho, as recordações de sua infância não eram mais as mesmas, tudo havia perdido a consistência e o brilho. No entanto, com a construção do novo Predinho, majestoso e esplêndido como se apresenta, os sentimentos renascem dentro dos saudosos corações, a vida volta a pulsar com mais vigor e a história finalmente é reconstituída.
Eis que renasce a pérola sagrada!… O companheiro de tantas aventuras maravilhosas, que embalou a vida dos contemporâneos daqueles bons tempos passados, ressurgiu como que num passo de mágica: garboso, opulento, suntuoso e belo!…
A inauguração ocorreu no dia 19 de julho de 2025, por iniciativa do Prefeito e sua equipe, com muita alegria e muita festa. No local deverá funcionar o Centro Cultural Israel Inácio da Costa e a Secretaria Municipal de Educação Iris Rezende Machado. Presentes aos festejos diversas autoridades locais, estaduais e prefeitos de cidades vizinhas, além da convidada especial, Ana Paula, filha de Iris Rezende. Todos recebidos com honraria pelos anfitriões, Prefeito Gilmar Pereira de Souza e a Primeira Dama do Município, Terezinha de Jesus da Costa Souza, sua esposa.
A propósito, o grande e respeitado político goiano, Iris Resende Machado, dizia que o Sobradinho foi o primeiro prédio de dois andares que ele conheceu. Sabe-se que Iris fez parte da história da construção do Sobrado. Ele era jovem, morava em fazenda não muito distante, no município de Cristianópolis, e trabalhava com seu pai em serviços gerais de fazenda, incluindo-se trabalho em olaria e transportes diversos em carros de bois. Como candeeiro, ele ajudou o seu pai a transportar materiais, como telhas e tijolos, para a construção do Predinho, em carro de bois.
No dia 8 de agosto de 2004, em entrevista concedida ao Jornal Opção, quando indagado sobre sua vida na roça, especialmente com que trabalhava, Iris Rezende respondeu: “Com tudo. Tudo que é de roça eu sei fazer bem. Sei desleitar uma vaca, montar um burro bravo, trabalhar no machado, trabalhar na foice. Trabalhei muito na olaria do meu pai. Quando o sol saía, eu, menino de 8 anos, já tinha cortado 700 tijolos”.
A história do Sobradinho registra a sua construção no ano de 1937, pelo Sr. Galdino Moreira Chagas, dois anos antes da inauguração oficial do povoado, ocorrida em 1939. Foi o orgulho do arraial durante muitos anos. Portentoso Arranha-céu, aos olhos dos esperançosos pioneiros do lugar. Era o início da povoação que recebeu a denominação de Patrimônio de São Miguel Arcanjo. Talvez a construção de maior destaque da povoação, despertando a curiosidade dos visitantes, embora outras casas antigas tivessem histórias de sobra para contar. Era uma relíquia do lugar. E a sua demolição aconteceu em 1998, pela Prefeitura, por questões estruturais, devido ao comprovado risco de desabamento.
Avançando um pouco mais na história, antes desse fato a notícia que se tem é a de que até o ano de 1928 havia no local apenas o cemitério, dois ranchos de capim à margem direita do Córrego das Vacas, e uma casa de fazenda à sua margem esquerda. Um dos ranchos pertencia a Antonio Francisco e se localizava um pouco abaixo do Lajeado. Lá o proprietário recebia seus pacientes para tratamentos de homeopatia. O outro ficava mais abaixo, à beira da estrada da travessia do córrego (hoje saída para Cristianópolis), e seu proprietário era Chico Baiança, conhecido rezador de terço e benzedor. Do outro lado do córrego, ali próximo, situava-se a casa mencionada, sede da fazenda de Felipe da Costa e dona Antoninha Responsadeira.
Conta-se que Felipe Luiz de Carvalho, mais conhecido na época por Felipe da Costa, e sua mulher, dona Antônia Pinto de Carvalho, dona Antoninha, teriam adquirido as terras onde se localizava o cemitério, doando-as à Igreja, para então erguer-se ali uma povoação em louvor a São Miguel. E de acordo com as informações dos arquivos da Paróquia de N.S. do Bonfim, de Silvânia, na data de 29 de setembro de 1939 o Patrimônio de São Miguel Arcanjo foi inaugurado com a celebração de uma missa festiva e oficialmente como Bairro da Paróquia de Bonfim, época em que a povoação contava, no máximo, com umas vinte casas.
Esse lugarejo do passado, de tantas histórias, tantas vidas e tantos sonhos, foi elevado à Distrito de Silvânia em 05 de novembro de 1968. Mais tarde, virou cidade, uma linda cidade, desmembrando-se de Silvânia. Foi emancipada em 09 de janeiro de 1988, com a denominação de São Miguel do Passa Quatro, distante 87 km de Goiânia, a capital do Estado.