Em uma decisão considerada inédita no estado de Goiás, o Tribunal de Justiça (TJ-GO) determinou que o Ipasgo Saúde, plano de assistência médica dos servidores públicos estaduais, cubra os custos de uma cirurgia de feminização facial para uma de suas beneficiárias, uma servidora pública transgênero.
A sentença, proferida na última quinta-feira (03), reforma uma decisão anterior de primeira instância e acolhe os argumentos da Defensoria Pública do Estado de Goiás (DPE-GO), que representa a servidora no caso. O Ipasgo Saúde ainda pode recorrer da decisão.
A servidora optou por não ter sua identidade revelada para preservar sua privacidade. Para ela, a decisão judicial representa não apenas uma conquista pessoal, mas um marco significativo para a comunidade trans e travesti em Goiás.
O Entendimento Judicial
O cerne da disputa residiu na classificação da cirurgia de feminização facial. O Ipasgo Saúde havia negado a cobertura inicialmente, argumentando que se tratava de um procedimento meramente estético e, portanto, não coberto pelo contrato. Além disso, o plano de saúde sustentou que a cirurgia não consta no rol de procedimentos e eventos em saúde da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), lista que serve de referência para a cobertura mínima obrigatória dos planos de saúde no Brasil.
Contudo, a Defensoria Pública argumentou que, para a servidora, a cirurgia possui caráter reparador e funcional, sendo um componente essencial de seu processo de transição de gênero e fundamental para sua saúde integral e bem-estar psicológico. A DPE-GO apresentou laudos e prescrições médicas que atestavam a necessidade do procedimento, não por questões estéticas, mas como parte do tratamento para a incongruência de gênero, visando alinhar as características físicas da paciente com sua identidade de gênero.
A 2ª Turma Julgadora da 7ª Câmara Cível do TJGO, por unanimidade, acolheu a tese da Defensoria. O relator do caso, juiz substituto em segundo grau Ricardo Prata, enfatizou em seu voto que a existência de prescrição médica expressa e fundamentada é um fator determinante para caracterizar a necessidade do procedimento.
Prata também abordou a natureza do rol da ANS, explicando que a jurisprudência tem evoluído no sentido de considerá-lo uma referência básica, e não necessariamente uma lista taxativa que esgota todas as possibilidades de cobertura. Ele ressaltou que procedimentos que visam à afirmação de gênero, como a feminização facial neste contexto, devem ser compreendidos sob a ótica da saúde integral do indivíduo. Segundo o juiz, tais intervenções funcionam como medidas de prevenção ao adoecimento psíquico decorrente do sofrimento causado pela incongruência de gênero, pelo preconceito e pelo estigma social enfrentados pela população transgênero.
O Que é a Cirurgia de Feminização Facial?
A cirurgia de feminização facial (CFF ou FFS, do inglês Facial Feminization Surgery) engloba um conjunto de procedimentos cirúrgicos e, por vezes, não cirúrgicos, cujo objetivo é modificar as estruturas faciais percebidas como masculinas, suavizando-as para criar uma aparência mais congruente com a identidade de gênero feminina. Entre os procedimentos comuns estão a frontoplastia (remodelação da testa e arco supraorbital), rinoplastia (modificação do nariz), mentoplastia (remodelação do queixo), mandibuloplastia (contorno da mandíbula) e a condrolaringoplastia (redução do pomo de Adão).
Para muitas mulheres transgênero, a CFF é um passo crucial no processo de transição, pois o rosto é uma das partes do corpo mais visíveis e associadas à identidade social. A “discordância” entre a identidade de gênero e as características faciais pode ser fonte significativa de disforia de gênero, ansiedade e depressão.