O recente julgamento da trama golpista pelo Supremo Tribunal Federal (STF), inevitavelmente, trouxe de volta à memória uma trajetória histórica de movimentos autoritários que, ora tentaram, ora conseguiram impor rupturas institucionais no Brasil. A Ação Penal 2668 se tornou extraordinária, pois, pela primeira vez na história recente, autoridades foram responsabilizadas por uma tentativa explícita de golpe de Estado e outros crimes relacionados.
Ao longo do século XX e no início do XXI, o Brasil viveu episódios em que a ordem constitucional foi rompida ou seriamente ameaçada — por revoltas militares, manobras institucionais e insurreições civis. A história revela padrões recorrentes: tensões entre Forças Armadas e governos civis, uso de narrativas de “ameaça comunista” para legitimar intervenções e atores políticos que instrumentalizam crises institucionais para seus interesses.
A República

A República Brasileira, se lembrarmos bem, começou com um golpe contra a monarquia. O marechal Deodoro da Fonseca, à frente de tropas do Exército, depôs o imperador Dom Pedro II em 15 de novembro de 1889, proclamando a República sem derramamento de sangue.
Apesar de hoje ser celebrado como “Dia da Proclamação da República”, o movimento teve caráter militar e contou com apoio de setores civis descontentes, especialmente republicanos e cafeicultores. Para muitos historiadores, essa situação é encarada como golpe de Estado, pois a deposição ocorreu sem consulta popular.
Deodoro assumiu como chefe do governo provisório e, posteriormente, como primeiro presidente da República. A Constituição de 1891 consolidou o presidencialismo e o federalismo, mantendo as elites políticas e econômicas no controle — inaugurando a República Velha (1889–1930). Esse ponto inicial mostra que rupturas institucionais acompanham a história republicana desde o começo.
Tenentismo e a Revolução de 1930

Na década de 1920, insurreições de oficiais jovens das Forças Armadas, os “tenentes”, contestaram a República Velha e denunciaram a corrupção das oligarquias estaduais. Revoltas em 1922 e 1924 culminaram na marcha da Coluna Prestes, comandada por Luís Carlos Prestes.
O descontentamento dos tenentes se somou às crises políticas e econômicas, preparando o terreno para a chamada Revolução de 1930, que depôs o presidente Washington Luís e impediu a posse de Júlio Prestes, abrindo caminho para Getúlio Vargas tomar o poder.
Plano Cohen e Estado Novo (1937)

Já em 1937, um suposto complô comunista, conhecido como Plano Cohen, serviu de pretexto para Vargas decretar o Estado Novo, um regime ditatorial que centralizou o poder e suspendeu liberdades civis.
Posteriormente, foi revelado que o plano tinha sido forjado por setores do próprio Exército e grupos integralistas. O episódio ilustra como narrativas fabricadas podem “justificar” rupturas institucionais.
Campanha da Legalidade

Após a renúncia de Jânio Quadros em 1961, setores militares e políticos tentaram impedir a posse do vice João Goulart, pois o viam como ligado a movimentos trabalhistas e temiam uma aproximação com ideias consideradas “esquerdistas” ou até comunistas.
Surgiu então a “Campanha da Legalidade”, liderada pelo governador Leonel Brizola, e envolveu a mobilização de civis e militares leais à Constituição, garantindo a posse de Jango com um acordo que limitou parte de seus poderes.
Esse acordo foi concebido por meio de uma emenda constitucional que instituiu o parlamentarismo temporariamente, em setembro de 1961. Mas o cenário só durou até janeiro de 1963, quando um plebiscito restabeleceu o presidencialismo pleno, devolvendo todos os poderes a Jango.
Esse episódio é um exemplo de que nem toda crise de sucessão resulta em golpe — mostrando que a mobilização institucional e popular pode conter uma ruptura.
Golpe de 1964 e a ditadura

Entre 31 de março e 1º de abril de 1964, forças militares brasileiras derrubaram o presidente João Goulart, instaurando uma ditadura que durou 21 anos e que ficou marcada por repressão política, censura à imprensa, perseguição a opositores e graves violações de direitos humanos.
O governo de Goulart enfrentava uma intensa instabilidade econômica, com inflação crescente, greves e conflitos agrários, enquanto políticas de reforma de base, incluindo tentativas de reforma agrária e mudanças na legislação trabalhista, geravam forte oposição de setores conservadores da sociedade.
O medo do avanço do comunismo na América Latina, intensificado pelo auge da Guerra Fria, aliado a interesses políticos internos e ao apoio estratégico dos Estados Unidos — que chegou a mobilizar uma frota naval na chamada Operação Brother Sam para apoiar os golpistas —, serviu de justificativa para a intervenção militar.
Durante o regime, instituições democráticas foram suspensas, partidos políticos foram extintos e as liberdades civis foram severamente restringidas, deixando marcas irreparáveis — na política, na sociedade e na cultura — que continuam ecoando até hoje.
Tentativa contemporânea

No episódio de 8 de janeiro de 2023, apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro invadiram e depredaram o Congresso, o Palácio do Planalto e o STF, tentando deslegitimar a transição presidencial e provocar a decretação de uma GLO – Garantia da Lei e da Ordem – para que as Forças Armadas tomassem o poder.
Diferentemente de golpes passados, houve forte articulação via redes sociais e financiamento de movimentos de desinformação digital. Muitos envolvidos foram presos, e o judiciário está responsabilizando cada civil e militar que se envolveu nesta trama.
Outros questionamentos

Alguns episódios modernos, como o impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016, continuam sendo debatidos: enquanto setores da sociedade consideram que o processo foi um rito constitucionalmente válido, outros qualificam como golpe parlamentar, por suposta motivação política e ausência de provas que configurassem crime de responsabilidade nos moldes tradicionais.
Isso evidencia como a linha entre manobra política e ruptura institucional pode ser interpretada de formas diferentes.
Democracia
Seja em 1889, 1930, 1964 ou 2023, a história brasileira mostra que a democracia convive historicamente com forças dispostas a testá-la, muitas vezes seguindo os mesmos padrões: a tensão entre as Forças Armadas e o poder civil, a instrumentalização de crises institucionais e, principalmente, o uso de narrativas de medo — como uma “ameaça comunista” — para legitimar a quebra da ordem.
A grande diferença é que, no século XXI, o Estado Democrático de Direito não apenas resiste, mas, para permanecer na história, busca responsabilizar os articuladores de rupturas, reafirmando a importância de instituições sólidas para a preservação da ordem democrática.