No dia 7 de outubro de 1928, o Porto de Santos foi palco da descoberta de um dos crimes mais emblemáticos da história brasileira. O que parecia ser apenas mais um despacho de carga para a França se mostrou, na verdade, um assassinato brutal que, quase um século depois, serve como um estudo de caso sobre como a imprensa e a justiça historicamente romantizaram a violência contra a mulher.
O embarque no Vapor Massilia

A história começa com um baú de madeira pesando cerca de 100 quilos. O imigrante italiano Giuseppe Pistone, de 31 anos, tentava despachar o volume para Bordeaux, na França, a bordo do navio Massilia.
Durante o içamento da carga pelo guindaste, um acidente mudou o curso da história: o baú sofreu um impacto e uma fenda se abriu. De dentro, começou a escorrer um líquido fétido. As autoridades portuárias decidiram abrir, e então encontraram o corpo de uma mulher, mutilado e coberto com pó de arroz e sal, em avançado estado de decomposição.

A vítima era Maria Mercedes Fea, uma italiana de 24 anos, esposa de Giuseppe. E o que choca mais ainda: a autópsia revelaria que ela estava grávida de seis meses.
A dinâmica do crime: fraude, não ciúme
A investigação do crime de 1928 revelou que a verdadeira motivação foi a ganância aliada à necessidade de silenciamento. A reconstrução baseada nos autos do processo expõe que Pistone estava longe de ser um comerciante tradicional; tratava-se, na verdade, de um indivíduo com histórico de estelionato na Argentina, que buscava o enriquecimento fácil aplicando golpes na própria família.
O estopim da tragédia ocorreu no apartamento do casal, na Rua da Conceição, bairro de Santa Ifigênia, quando Giuseppe interceptou uma carta na qual Maria denunciava suas fraudes à sogra na Itália. No dia 4 de outubro, ele asfixiou a esposa com um travesseiro, configurando o ato não como um crime passional, mas como uma brutal “queima de arquivo”.

A sequência de fatos que veio a público demonstrou que o criminoso agia com ainda mais frieza: o assassino conviveu com o cadáver por três dias dentro de casa antes de serrar as pernas da vítima para acomodá-la na mala e, por fim, despachá-la sob a falsa identidade de Francesco Ferrero.
A cobertura da Imprensa em 1928
A análise dos jornais da época, como a Folha da Manhã e o Diário Nacional, revela a construção de um mito. Mesmo diante da atitude fria e calculista de um estelionatário que esquartejou a esposa grávida, a narrativa de “tragédia passional” era o que dominava o imaginário público.
Enquanto a perícia técnica foi elogiável para a época (rastreando a fabricação da mala e a caligrafia de Pistone em tempo recorde), a narrativa social buscava humanizar o “monstro”, procurando falhas no comportamento da vítima para justificar o injustificável.
O julgamento e a condenação
A defesa tentou evocar a “privação de sentidos”, transformando todo aquele cálculo frio em desespero de momento. Porém, a brutalidade da ocultação do cadáver e a “engenharia” da mala chocaram o júri.
Em 1931, Giuseppe Pistone foi condenado a 31 anos de prisão, uma pena severa para os padrões da época, que posteriormente foi comutada para 20 anos por decreto presidencial na era Vargas (1944).
O que mudou: De 1928 a 2025
Comparando o cenário de 1928 com a realidade atual, as mudanças são drásticas na lei, mas o desafio cultural persiste.
| Aspecto | Em 1928 (Caso Pistone/Maria Fea) | Cenário Atual (Brasil 2025) |
| Tipificação Penal | Homicídio e Ocultação de Cadáver. | Feminicídio (Lei 13.104/2015) e Ocultação de Cadáver. |
| Agravantes | Crime contra cônjuge (considerado, mas pesava a “honra”). | Agravante de pena por crime contra gestante e feminicídio. |
| Argumento de Defesa | “Legítima Defesa da Honra” ou “Privação de Sentidos” eram comuns. | A tese da Legítima Defesa da Honra é inconstitucional (STF, ADPF 779). |
| Cobertura da Imprensa | Foco no “mistério” e romance trágico. | Foco na violação de direitos e na memória da vítima. |
| Penalidade | Pistone condenado a 31 anos (cumpriu menos). | Penas de feminicídio são hediondas, dificultando progressão rápida. |
Desafio ainda atual
Vários anos depois, o feminicídio continua a ocorrer em níveis alarmantes no Brasil. O crime da mala de 1928 deve ser lembrado não pelo sensacionalismo, mas pela sua verdadeira natureza. Maria não foi vítima de um “amor louco”, mas de um sistema que permitia a um homem dispor da vida da esposa como se fosse uma carga indesejada.






