A formação do Estado do Vaticano em 1929 é o desfecho de uma das mais complexas disputas políticas e religiosas da história europeia: a tensão entre o poder secular dos papas e a formação do Estado-nação italiano no século XIX. Esse processo envolveu uma série de transformações que vão desde o florescimento dos ideais nacionalistas no século XVIII, passando pela atuação de personagens como Vítor Emanuel II, Garibaldi, Mazzini e o Papa Pio IX, até o acordo final com Benito Mussolini.
O poder temporal da Igreja antes da unificação
Durante mais de um milênio, os papas não foram apenas líderes espirituais, mas também governantes de fato. Desde a doação de Pepino, no século VIII, os pontífices exerceram autoridade direta sobre um território conhecido como Estados Pontifícios, que ocupava boa parte do centro da península Itálica. Roma era a capital desse domínio teocrático, e o Papa acumulava funções de chefe de Estado, juiz, legislador e diplomata.
Esse poder temporal era frequentemente justificado pela ideia de que a Igreja deveria ser livre de qualquer submissão política para exercer sua missão espiritual. Ao controlar seus próprios territórios, o Papa manteria a independência necessária diante das monarquias e impérios europeus. Contudo, com o avanço das ideias liberais, nacionalistas e iluministas, essa lógica passou a ser desafiada.
Na virada para o século XIX, a Itália era um arquipélago político: reinos como o das Duas Sicílias no sul, o Reino da Sardenha (ou Piemonte) no norte, além de ducados independentes e áreas sob influência austríaca. No centro, os Estados Pontifícios formavam uma barreira territorial e ideológica à unificação da península. O processo de unificação, conhecido como Risorgimento, foi impulsionado por uma variedade de correntes: liberais monarquistas, republicanos revolucionários e nacionalistas pragmáticos.
O surgimento de movimentos como a Jovem Itália, fundada por Giuseppe Mazzini em 1831, representou a primeira grande força ideológica organizada em favor de uma Itália unificada, laica e republicana. Mazzini acreditava que a unidade italiana não deveria vir por meio de reis ou exércitos estrangeiros, mas sim da mobilização do povo em nome da pátria. Sua doutrina era influenciada por ideias iluministas, pela Revolução Francesa e por valores republicanos radicais. A Jovem Itália teve papel fundamental na formação de consciências e na propagação de ideais patrióticos, embora seus levantes revolucionários tenham sido em sua maioria reprimidos.
Enquanto Mazzini agitava o ideário revolucionário, o avanço prático da unificação foi liderado por forças monárquicas. O Reino da Sardenha, governado por Vítor Emanuel II, tornou-se o centro do projeto político de unificação. Com o auxílio de seu primeiro-ministro, o conde de Cavour, adotou-se uma estratégia mais pragmática: a construção de alianças diplomáticas com potências europeias (como a França de Napoleão III) e o uso das armas em guerras específicas contra os austríacos, que controlavam regiões como a Lombardia e o Vêneto.

Cavour era contrário a uma Itália republicana ou laica — via na Igreja Católica um pilar da cultura italiana, mas considerava os Estados Pontifícios um obstáculo geográfico e político. Sua política externa habilidosa resultou na adesão de várias regiões ao Reino da Sardenha, sem necessariamente recorrer à revolução.
A figura que incendiou o imaginário popular foi Giuseppe Garibaldi, um herói carismático que conciliava o idealismo de Mazzini com a disciplina militar. Em 1860, Garibaldi lançou a Expedição dos Mil, com cerca de mil voluntários, os chamados Camisas Vermelhas. Eles partiram da Ligúria em direção à Sicília e ao Reino de Nápoles, derrotando forças bem maiores com o apoio de populações locais. A campanha foi fulminante e vitoriosa.
Além de ser uma forte influência na Itália, Garibaldi também ganhou destaque no Brasil, em que ele assumiu a causa da República do Rio Grande do Sul em sua tentativa de se separar do Brasil, juntando-se aos rebeldes e participando da Revolução Farroupilha, de 1835.
Embora Garibaldi fosse republicano convicto, reconheceu a importância da unidade nacional e aceitou entregar os territórios conquistados a Vítor Emanuel II — um gesto que simbolizou a prioridade da unificação frente às convicções pessoais. Em 1861, o rei foi proclamado monarca do Reino da Itália, com capital em Turim. Roma, no entanto, permanecia como uma “ilha” papal.

A Questão Romana e o “prisioneiro do Vaticano”
Roma ainda estava sob domínio dos Estados Pontifícios e protegida por tropas de Napoleão III. Essa situação manteve-se até 1870, quando a derrota da França na Guerra Franco-Prussiana levou à retirada das forças de proteção papal. Aproveitando o momento, tropas italianas invadiram Roma em 20 de setembro de 1870 e anexaram o território ao Reino da Itália. Pouco depois, a cidade foi proclamada capital italiana.
A Igreja reagiu com veemência. O Papa Pio IX, autor do influente Syllabus Errorum (1864) — documento que condenava o liberalismo, o racionalismo e a separação entre Igreja e Estado — recusou-se a reconhecer a legitimidade da anexação. Recolheu-se ao Vaticano, declarando-se “prisioneiro voluntário”, e impôs o Non Expedit, uma proibição formal aos católicos de participarem da vida política italiana. Assim se instaurou a Questão Romana, uma das mais duradouras tensões entre Igreja e Estado da era moderna.
Durante os pontificados seguintes (Leão XIII, Pio X, Bento XV), a Santa Sé manteve-se em posição de isolamento, mas não deixou de atuar internacionalmente. O Vaticano continuava a exercer enorme influência sobre milhões de fiéis em todo o mundo, mesmo sem ser reconhecido como Estado soberano.
Foi apenas sob o governo de Benito Mussolini que o impasse encontrou uma solução. O regime fascista buscava consolidar apoio popular e aproximar-se da Igreja, cuja influência era decisiva na sociedade italiana. Mussolini via na resolução da Questão Romana uma forma de legitimar seu poder e dar uma “unidade moral” ao Estado fascista.
Após negociações com o Papa Pio XI, foram assinados em 11 de fevereiro de 1929 os Pactos de Latrão, compostos por três documentos:
- Um tratado reconhecendo a soberania do Estado do Vaticano e sua independência;
- Uma concordata regulando as relações entre Igreja e Estado italiano (como o ensino religioso nas escolas);
- E uma convenção financeira que indenizava a Igreja pelas perdas territoriais anteriores.
Nascia, assim, o Estado do Vaticano, com uma área de apenas 44 hectares, dotado de governo próprio, sistema postal, cunhagem de moeda, corpo diplomático e soberania internacional. Roma tornava-se capital do Estado italiano, enquanto o Papa tornava-se soberano absoluto da nova cidade-Estado.

A criação do Vaticano não apenas encerrou uma disputa histórica, como estabeleceu um modelo único no mundo: um Estado teocrático soberano situado dentro da capital de outro país. Desde então, a relação entre o Vaticano e a Itália evoluiu, passando por tensões e reaproximações, especialmente durante e após a Segunda Guerra Mundial.
O Vaticano manteve sua neutralidade durante o conflito, mas denunciou as violências do nazismo e comunismo. Já na segunda metade do século XX, a Igreja teve papel importante na consolidação da democracia na Itália, especialmente durante o período da Guerra Fria. A concordata original de 1929 foi revisada em 1984, eliminando o catolicismo como religião oficial do Estado italiano e reforçando o princípio da laicidade.
Atualmente, o Vaticano é um centro espiritual global, sede da Igreja Católica e um protagonista diplomático discreto, mas influente. Sua história de criação, entretanto, permanece como um dos capítulos mais simbólicos das tensões entre fé, política e soberania.