A Parte 1 da série sobre eleições proporcionais no Brasil, denominada Como se Comporta o Eleitor em Eleições Proporcionais de Lista Aberta, mapeou o comportamento do eleitor nas eleições proporcionais. Agora as perguntas mudam: por que votamos assim? Por que o personalismo, a centralidade do território e a baixa força partidária são tão persistentes no Brasil? A resposta não está apenas nas regras eleitorais, mas em processos históricos e padrões culturais profundamente enraizados.
Compreender esse passado é essencial para entender o presente e, sobretudo, para planejar campanhas proporcionais de forma realista. A Parte 2 mostra como a sociabilidade brasileira moldou o sistema político e criou condições perfeitas para que a lista aberta produzisse exatamente o tipo de voto que observamos hoje.
A tradição da mediação pessoal e das redes locais
Desde a Primeira República, a política brasileira se sustentou em relações pessoais. Em Coronelismo, Enxada e Voto, Victor Nunes Leal mostrou que coronéis rurais, chefes urbanos e intermediários exerciam poder distribuindo proteção, recursos e acesso ao Estado. Em A Ordem Privada e a Organização Política Nacional, Nestor Duarte reforçou essa interpretação ao demonstrar como estruturas de mando organizavam a dinâmica social e política.
Em linha semelhante, José Murilo de Carvalho, em Pontos e Bordados, analisa a persistência histórica dessas formas de mando local, mostrando que dinâmicas de patronagem, autoridade pessoal e mandonismo não são resíduos arcaicos, mas elementos que moldaram e ainda moldam a política brasileira. Esses mecanismos de intermediação criaram um ambiente em que
o eleitor confia em quem enxerga, conhece e pode cobrar. A política funciona, assim, como extensão das redes pessoais e locais de poder.
Casa e Rua: a sociologia profunda do Brasil
A literatura clássica sobre cultura política brasileira reforça esse padrão. Em Carnavais, Malandros e Heróis e sobretudo em A Casa e a Rua, Roberto DaMatta mostra como a fronteira entre o espaço privado e o espaço público é pouco rígida no Brasil, permitindo que expectativas afetivas e relações pessoais se projetem sobre instituições que deveriam operar de modo impessoal.
Em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda descreve a figura do homem cordial, cuja sociabilidade baseada em vínculos pessoais atravessa a vida pública, produzindo desconfiança das regras universais e preferência por relações diretas. Já em Os Donos do Poder, Raymundo Faoro argumenta que o Estado patrimonial brasileiro se estruturou de modo a reforçar hierarquias pessoais, dependência e apropriação privada dos espaços públicos.
Nesse ambiente cultural, o eleitor raramente se orienta por programas partidários abstratos. Ele busca alguém que represente sua comunidade, que reconheça sua experiência e que possa ser cobrado diretamente.
A abrasileiração da lista aberta
Quando o sistema de lista aberta foi implantado em 1932, encontrou um terreno muito diferente daquele observado em democracias europeias. Em países com partidos fortes e identidades ideológicas bem definidas, o voto tende a ser organizado de forma programática. No Brasil ocorreu o oposto.
Em Incentives to Cultivate a Personal Vote, John Carey e Matthew Shugart demonstram que o modelo institucional brasileiro oferece alguns dos maiores incentivos ao personalismo entre democracias contemporâneas. Aqui, a combinação entre partidos frágeis, sociabilidade baseada em vínculos pessoais e tradição de mediação local transformou a lista aberta em um sistema centrado no indivíduo. As campanhas passaram a se organizar em torno de números, slogans pessoais, redes locais e disputas internas dentro das próprias legendas.
Esse arranjo produz um efeito adicional decisivo:
numa eleição proporcional de lista aberta, a competição principal não ocorre apenas entre partidos, mas dentro do próprio partido.
Os candidatos disputam votos entre si, e somente aqueles que alcançam as maiores votações individuais dentro da lista convertem desempenho em cadeiras. Assim, mesmo uma votação expressiva pode não garantir sucesso eleitoral se o candidato não estiver bem posicionado em relação aos demais nomes da mesma legenda. Essa dinâmica intensifica o personalismo, amplia o investimento em redes individualizadas e transforma colegas de partido em competidores diretos pela mesma vaga.
Federalismo, trajetórias políticas e o peso do território
O federalismo brasileiro aprofunda vínculos territoriais na carreira política. Em Ambition, Federalism and Legislative Politics in Brazil, David Samuels demonstra como prefeitos, vereadores e lideranças regionais utilizam mandatos no Congresso para fortalecer suas bases locais. Em The Deadlock of Democracy in Brazil, Barry Ames documenta a concentração geográfica dos votos, mostrando que parlamentares competitivos raramente se distribuem de forma homogênea pelo estado.
A literatura institucional contemporânea, como Corruption and Democracy in Brazil: The Struggle for Accountability, evidencia que mecanismos de accountability fracos e desiguais reforçam a centralidade do território.
Onde a responsabilização política é fragmentada, a mediação local e a reputação pessoal do deputado assumem peso maior na decisão do eleitor.
O território funciona, assim, como indicador de confiabilidade. Quem aparece, escuta e entrega tende a consolidar apoio. Quem não está presente dificilmente se torna referência eleitoral.Inscreva-se
O enfraquecimento dos partidos
O sistema partidário brasileiro tem baixo enraizamento social. Em Rethinking Party Systems in the Third Wave of Democratization, Scott Mainwaring mostra como as legendas brasileiras, embora institucionalmente relevantes, construíram pouca fidelização junto ao eleitorado. Pesquisas do ESEB reforçam esse padrão ao indicar que apenas uma minoria dos brasileiros declara proximidade partidária consistente.
Essa fragilidade organizacional dificulta que partidos ofereçam mensagens claras, coordenem campanhas e disciplinem suas bancadas. Em Making Brazil Work: Checking the President in a Multiparty System, Carlos Pereira e Marcus André Melo demonstram como a baixa coordenação partidária e o elevado grau de fragmentação eleitoral estimulam estratégias individualizadas de sobrevivência política, reforçando o personalismo legislativo.
A análise de Corruption and Democracy in Brazil complementa esse quadro ao mostrar que práticas de patronagem, financiamento assimétrico e accountability limitada ampliam o peso de indivíduos em detrimento de estruturas partidárias.
Em um sistema que oferece poucos sinais programáticos claros, o eleitor identifica mais facilmente o candidato do que a legenda.
Com isso, o partido organiza pouco da escolha. O candidato, ao contrário, é visível, tangível e reconhecido. O personalismo aparece como resposta natural a um sistema partidário frágil e pouco informativo.
Como esse pano de fundo alimenta a estratégia
Esses elementos explicam por que a lista aberta brasileira produz um voto tão personalista e localizado. A cultura da mediação, a sociologia da casa e rua, o federalismo e a debilidade partidária convergem para o mesmo ponto.
O eleitor vota em pessoas porque o sistema político brasileiro foi historicamente construído para funcionar dessa forma.
A Parte 3 transformará esses fundamentos em orientações práticas para campanhas proporcionais, mostrando como candidatos podem agir de forma estratégica dentro das regras reais do jogo.
Nota: Em breve lançaremos o Manual GRUPOM para Candidatos Proporcionais, reunindo princípios, métricas, ferramentas práticas e modelos de inteligência estratégica para disputar 2026 com planejamento profissional e vantagem competitiva.
Referências
Barry Ames – The Deadlock of Democracy in Brazil, 2009
Sérgio Buarque de Holanda – Raízes do Brasil, 2015
John Carey e Matthew Shugart – Incentives to Cultivate a Personal Vote, 1995
José Murilo de Carvalho – Pontos e Bordados, 2021
Roberto DaMatta – A Casa e a Rua, 1997
Roberto DaMatta – Carnavais, Malandros e Heróis, 1997
Nestor Duarte – A Ordem Privada e a Organização Política Nacional, 1939
Raymundo Faoro – Os Donos do Poder, 2021
Victor Nunes Leal – Coronelismo, Enxada e Voto, 2012
Scott Mainwaring – Rethinking Party Systems in the Third Wave of Democratization, 1999
Carlos Pereira e Marcus André Melo – Making Brazil Work: Checking the President in a Multiparty System, 2013
Timothy Power e Matthew Taylor (orgs.) – Corruption and Democracy in Brazil: The Struggle for Accountability, 2011
David Samuels – Ambition, Federalism, and Legislative Politics in Brazil, 2006
Obrigado pela leitura.
Doutor em ciência política, pesquisador do comportamento do brasileiro, instituições, Judiciário e identidade nacional. Professor universitário com passagens por diversas universidades, incluindo UnB e IDP. Ex-pesquisador da ENAP, ex-conselheiro da comissão de anistia do então MMFDH. Sócio e Consultor Técnico da Grupom Consultoria e Pesquisas. Veja o instagram da Grupom.
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