Em cima da gameleira, olhando os periquitos bem de pertinho, gritando feito malucos do pedaço, eu tentava imaginar o que estariam sentindo naquele exato momento em que todos estavam juntos e parecia que todos comemoravam exatamente estarem juntos ali, e podendo voar em seguida como quem solta uma gargalhada, sai do corpo e volta feliz da vida.
E depois tentava traduzir o que eu sentia vendo aquela algazarra, aquela explosão, em poemas cheinhas de adjetivos e interjeições, mas também fartos do meu próprio substantivo juvenil. Era começa da minha adolescência e a voz estava pela metade, os cabelos estavam pela metade e a alma estava transbordando. E não entendia bem o que eu fazia ali, ora com um estilingue, ora com uma espingarda de chumbinho, logo eu que não sei me assassinar direito.
Depois, com o tempo, fui acumulando situações limites, e juntei a elas as que identifiquei no passado, sem saber que eram extremas, como o por do sol na fazenda, o pique-esconde nas ruas da cidade, ou as lutas nas beiras de riachos com barro espalhado na pele e lama até os olhos da imaginação. E vieram sem medida o desconforto com a miséria humana nas ruas da capital e a lida renhida pela sobrevivência, com suas inglórias derrotas e eventuais vitórias, as de repente.
E hoje, quando olho meus filhos e percebo como cresceram sem mim, digo, sem esse espaço para meninos das ruas e dos pastos, e sem a sensação de estar livre completamente inclusive da vida, eu penso logo no que estarão sentindo, e penso também que está tudo bem, porque eles tiveram outra vida e essa vida que viveram e vivem lhes basta, são filhos com felicidade também. Aí penso mais: como traduzir esse sentimento deles com o tempo deles e o meu sentimento com o meu sentimento e ser fiel aos sentimentos nossos e ao tempo do mundo?
Minha querida amiga me diz que sentimento não é pra explicar, mas como explicar o que está contido na literatura, no que está latente em Rosa, em Veiga, no Ninho de Periquitos que nos conta …….. o sentimento é este: vivemos como quem morre de contradições, e morremos como quem vive em vãos. E não há nada que reflita o que sentimos como não há palavras que descrevam o que é Deus para quem crê.
Essa incapacidade de dizer coisas que sou e tenho aos montes carrego como herança, eu sei, porque quando me encontro com aqueles que estão na origem do lugar de onde saí, percebo que não sou único, a não ser na minha individualidade. No campo cerrado geral, somos gerações. E sempre que peço meus parentes uma luz sobre a expressão do que sentimos, o que ouço e vejo é sorriso. Sorriso de lado, o olhar terno, as mãos amassadas e riscadas das cercas de arame me arranhando o rosto.
No dia em que eu souber descrever letra por letra o que as mãos da minha tia me levam de sentimento dela que me fazem sentir o que sinto, eu já sei o que farei definitivamente: parado de escrever. Terei chegado ao limiar dos céus. Ao ponto em que a sabedoria nem precisar terá mais de ser escrita, cantada, suspirada. Bastará que eu exista, ainda que na lembrança, para que todos sintam o que nem acreditam sentir. Nem te conto. Palavras não darão conta de mim, nem de nada. Santa ceia da literatura espiritual.