Há uma simbiose curiosa entre o altar e a vitrine na mente do designer Lucas Caslú. Quando criança, em Goiânia, ele usava as páginas em branco no final da Bíblia para desenhar enquanto os cultos aconteciam. Anos mais tarde, essa herança tomou forma na Casa de Criadores, em São Paulo, onde ele transformou referências pessoais em uma moda autoral e cheia de significado.
Foi tudo muito rápido. Em menos de um ano, Lucas saiu de uma vitória no concurso Sou de Algodão direto para a abertura do maior evento de moda autoral do país. Lucas trouxe a coleção “Saldos”. A obra é um manifesto estético sobre o acúmulo e o descarte, onde o sagrado se veste de promoção e o “diabo” veste o que sobra.
A teologia do consumo
A abertura do desfile não deixou dúvidas sobre a provocação. Ao som de “Do jeito que o diabo gosta”, cantada pela artista drag Ottair, a primeira modelo cruzou a passarela com o rosto pintado e um símbolo de oferta na cabeça.
“Eu quis trazer essa irreverência, essa mistura do santo com o mundano, a oferta da igreja com a oferta da loja,” explica Lucas.
Para o estilista, a relação do mercado com a moda autoral carrega uma ironia um tanto cruel: um ciclo de criação que já nasce pensando no lixo. Essa percepção vem da prática, afinal, Lucas trabalhou no “chão de fábrica” do varejo, de costureiro a visual merchandising em grandes redes. Local em que viu a efemeridade das campanhas — Dia dos Pais, Black Friday, Natal — onde toneladas de etiquetas e materiais gráficos viravam lixo em questão de dias.
Do contêiner para a passarela
Lucas se autodefine como um “acumulador”. Mas, ao contrário da patologia, o seu acúmulo tem um viés de curadoria. O ponto alto da coleção veio de um achado casual: faixas de precificação de supermercado (aquelas amarelas com letras vermelhas garrafais anunciando “Arroz R$ 19,90”) achadas em um contêiner de lixo enquanto voltava do trabalho de ônibus.
“Eu desci, enchi sacos com aquilo e levei para casa,” conta. O material, que para a maioria é apenas poluição visual urbana, foi transformado. Lucas aplicou plásticos, criou texturas, franzidos e até um drapeado manual complexo — peça por peça, alfinete por alfinete — para vestir Ottair. O resultado é uma moda que funde o upcycling do lixo com a alta costura.
Além do material inusitado, a coleção mescla o algodão (sua raiz no concurso estudantil) com tafetá e sintéticos, criando uma superposição que ele chama de “experiência cotidiana”.
O DNA Goiano além da “44”
Vindo de um estado conhecido nacionalmente pelo agronegócio, pelo sertanejo e pelo polo de confecção atacadista da Região da 44, Lucas representa uma nova safra de criadores que rompem a barreira do “apenas comercial”.
Ele reconhece a potência econômica da moda goiana, mas vê mudança. “As pessoas em Goiânia estão buscando mais profissionais para customizar, para ter algo único. A internet e o ‘faça você mesmo’ impulsionaram essa valorização do manual,” explicou.
No seu dia a dia, Lucas vive essa dualidade: ele trabalha como desenhista no atelier Casa Noiva, criando, claro, vestidos para noivas. Essa dualidade — desenhar o sonho clássico da noiva de dia e vestir “diabos” conceituais à noite — reflete a maturidade de quem entende que a moda é, acima de tudo, técnica e adaptação.
Pés no chão
Questionado sobre a rapidez de sua ascensão, Lucas mantém os pés no chão, ou melhor, no trabalho. “A ficha só cai na hora do desfile. No resto do tempo, é uma correria insana,” diz. Para 2026, os planos envolvem traduzir essa arte conceitual em produtos comerciais, mas sem perder a alma, fazendo uma transição sutil para que o público possa consumir a marca sem choque.
Para quem olha de fora, a coleção “Saldos” pode parecer somente uma crítica ácida ao capitalismo. Para Lucas, é também sobre encontrar beleza no que foi rejeitado, seja um pedaço de plástico no lixo ou uma página em branco no final de uma Bíblia antiga. Como ele mesmo define sua assinatura atual: “Experiência cotidiana, arte e criatividade”. E, talvez, um pouco de fé naquilo que ninguém mais vê valor.

















