Um dos encontros mais inusitados já registrados entre indígenas isolados e moradores de uma aldeia aconteceu no Acre, na Terra Indígena Kulina, próxima ao rio Humaitá. Um indígena isolado chegou sozinho, passou a noite na casa de um dos moradores e partiu ao amanhecer, levando alimentos, utensílios e roupas. No dia seguinte, mais de dez membros do mesmo grupo apareceram em busca dele, incluindo mulheres e crianças.
O episódio chamou a atenção de especialistas e indigenistas, não só pela espontaneidade do contato, mas pelos riscos associados a ele. A Fundação Nacional do Índio (Funai) demorou a enviar uma equipe ao local, o que foi criticado por especialistas como Carlos Travassos, ex-coordenador de povos isolados da instituição. “Essa omissão é contrária a todas as regulamentações do departamento de isolados”, afirmou.
Segundo a Funai, o Brasil abriga ao menos 115 registros de povos indígenas isolados – o maior número conhecido no mundo. Desses, 28 grupos já foram oficialmente confirmados. A maioria vive em áreas remotas da Amazônia, embora haja uma exceção: os Avá-Canoeiro, localizados entre os estados de Tocantins e Goiás.

Isolamento como forma de sobrevivência
Esses povos não estão isolados por acaso. Após séculos de massacres e doenças trazidas por não indígenas, muitos grupos optaram pelo distanciamento como estratégia de sobrevivência. A colonização europeia, a expansão agrícola e as políticas estatais de integração forçada provocaram um verdadeiro genocídio. Estima-se que cerca de 70% da população indígena tenha sido dizimada nos primeiros séculos após a chegada dos portugueses.
A Constituição de 1988 representou um marco na proteção dos direitos indígenas, reconhecendo sua organização própria, tradições e terras originárias. No entanto, o avanço do agronegócio, o desmatamento e o enfraquecimento das políticas públicas voltadas aos povos originários colocam em xeque essas garantias.
Durante o governo de Jair Bolsonaro, por exemplo, houve denúncias de abandono da proteção a áreas onde vivem povos isolados. A Funai, historicamente voltada à proteção desses grupos, foi criticada por adotar posturas integracionistas. Em 2021, Bolsonaro foi denunciado por genocídio indígena no Tribunal Penal Internacional de Haia.
Vulnerabilidade e direitos
Além da fragilidade frente a doenças comuns para o restante da população, os povos isolados também enfrentam vulnerabilidades jurídicas e políticas. Embora tenham os mesmos direitos que qualquer cidadão brasileiro, há poucos mecanismos legais voltados especificamente à sua proteção. A principal salvaguarda é a Restrição de Uso, uma portaria da Funai que impede atividades econômicas em regiões onde vivem grupos isolados. No entanto, a renovação dessas restrições tem sido dificultada por pressões ligadas à expansão da fronteira agrícola.
De acordo com a assessora jurídica Carolina Santana, do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados, a não renovação dessas medidas representa uma ameaça direta à sobrevivência desses povos. “O atual governo transforma as violações de direitos em políticas públicas”, declarou.
Apesar das adversidades, os povos isolados seguem resistindo. Vivem de maneira autônoma, praticam agricultura, pesca e coleta, constroem ocas comunitárias e, em alguns casos, se aproximam de aldeias vizinhas, sem necessariamente buscar contato permanente.
O que se viu recentemente no Acre, portanto, é mais do que um encontro raro: é um lembrete da existência de povos que escolheram viver à sua maneira, mantendo tradições milenares e defendendo o direito de continuar livres – mesmo quando tudo ao redor parece querer empurrá-los para a extinção.